Passando por uma porta de Igreja vi, entre diversos cartazes da moderna religião, um que me chamou a atenção pelo nome do autor a que se atribuía o texto.
Aproximei-me e pude ler:
«Maria é a concreta realização do perfeito cristão. Maria é como nós. Jesus Cristo é outrossim um como nós. Mas ele também é Deus. Maria é que é inteiramente uma entre nós. O que ela é nós devemos ser. É por isto que Maria é-nos tão familiar. É por isso que nós a amamos». Karl Rahner
Mais abaixo lemos o nome da Organização que seleciona, compõe e distribui esses cartazes: «Missionários da PIME sob os auspícios do diretor da obra Pontifícia da Santa Infância. São Paulo. Com aprovação eclesiástica. Assinatura: Cr$...».
Comecemos nossas reflexões de baixo para cima: por x cruzeiros, e com aprovação eclesiástica, difunde-se pelas Igrejas, outrora destinadas ao culto católico, o nome de Karl Rahner, e a «doutrina» desse Doutor Comum da Igreja Pós-conciliar que sistematicamente rebate todas as dimensões sobrenaturais da nossa salvação sobre o plano do chamado antropocentrismo. Um protestante poderia dizer tudo aquilo em melhor português, mas não conseguiria, melhor do que esse religioso alemão, reduzir a figura singular da Mãe de Deus ao denominador comum de nossa mediocridade orgulhosa, e especialmente da orgulhosa mediocridade dos que vêem em Karl Rahner o substituto de Santo Tomás no mundo pós-conciliar. Voltaremos a falar nesta revolução, e nesta nova religião que ostenta triunfalmente a bandeira da mediocridade. O divino reduz-se ao humano, mas levado pela energia cinética da queda, o humano se esborracha no sub-humano, com aprovações sub-eclesiásticas.
O que diz de Maria Santíssima a Igreja? Refiro-me evidentemente à Santa Igreja Católica, à singular e única Igreja cuja maternidade virginal se configura pelas incomparáveis perfeições da Virgem Santíssima. O que diz a Igreja? Como falam os Papas, os Doutores, os Confessores, os Mártires, as Virgens? Como falaram os anjos? E como devemos nós, seus pequeninos filhos, exprimir nosso culto de especial veneração quando rezamos o Rosário e meditamos nos mistérios de Maria Santíssima?
Desordenadamente, como que tomados de surpresa, esbocemos algumas amostras da verdadeira devoção à Santíssima Virgem; e comecemos pelo admirável livro de São Luiz Maria Grignion de Monfort que tem este título: Tratado da Verdadeira Devoção à Santíssima Virgem. Abrindo ao acaso na página 30 lemos a passagem em que o autor desenvolve a idéia de Santo Antonino nestes termos: «Deus Pai ajuntou todas as águas e denominou-as mar; reuniu todas as suas graças e chamou-as Maria».
Santo Antonino de Florença, discípulo de Santa Catarina de Sena, grande teólogo do século, na sua Suma P. IV, Tít.XV, Cap.IV,parag. 2, diz: «appellavit eam Mariam quasi mare gratiarum». O mesmo Santo Antonino falando, agora da altitude hierárquica de Maria, nos diz: «A Virgem Santíssima está, pois, acima da hierarquia dos anjos, como um Chefe está mais distante do servidor do que um servidor está acima de outro. Todos os anjos são espíritos servidores e, entretanto, suas hierarquias são diferentes».
Ainda na mesma pauta, lemos de passagem as reflexões de um contemporâneo de Santo Antonino, o sábio Jean Charlier, mais conhecido pelo nome do lugar em que nasceu: Gerson. No seu famoso tratado sobre o Magnificat, diz: «A Virgem Santíssima constitui uma segunda hierarquia abaixo de Deus Trino e Uno. Primeiro Soberano Hierarca, perto do qual a humanidade do Filho foi a única admitida, e pôde sentar-se à direita da Majestade de Deus».
Ainda no mesmo tema da singular altitude de Maria Santíssima, Garrigou-Lagrange em Les trois Ages de la Vie Intérieure, nos cita o cardeal Cajetanus, grande comentador de Santo Tomás, que ousa dizer, a propósito da maternidade divina de Nossa Senhora, que essa maternidade «levou-a a atingir as fronteiras da divindade».
Santo Tomás (IIIa, Q.30, a.1) nos traz esta bela contribuição: «Deus esperou o consentimento da humanidade. Pelo fiat livremente pronunciado por Maria, ela cooperou no sacrifício da Cruz, já que foi ela que nos deu o sacerdote e a vítima».
No comentário sobre Ave et Pater, tão oportuna e generosamente editado pela Nouvelles Editions Latines, e encorajada pela Collection Docteur Commum da revista Itineraires, colhemos este precioso comentário sobre os termos gratia plena (p.163): «Antes de tudo a Virgem Santíssima ultrapassou todos os anjos por sua plenitude de graça. Para manifestar esta preeminência, o arcanjo Gabriel se inclinou diante dela e lhe disse: — Vós sois cheia de graça. Estava aí subentendida esta declaração: — Eu vos reverencio por estardes acima de mim por vossa plenitude de graças».
Estamos no Século XIII ouvindo o Doutor máximo da Igreja. Saltemos por cima de toda a Idade Média e pousemos no ano 431 em que se reuniu em Éfeso o IIIº Concílio Ecumênico motivado principalmente pelas heresias de Nestorius, para quem Maria seria apenas mãe de Cristo (Christotókos) e não mãe de Deus (Theotókos). Respondendo a Nestorius, São Cirilo, Bispo de Alexandria, pronunciara na Páscoa do ano 430 um sermão em que defendia a maternidade divina, sendo condenado pelo Papa Celestino; mas no ano seguinte, o Concílio de Éfeso, ao qual o Papa enviou dois delegados, deu ganho de causa a São Cirilo e condenou Nestorius. Registrou-se nesse episódio uma bela participação do povo de Deus, como no caso do arianismo. Enquanto os Bispos e os delegados do Papa debatiam a questão, o povo, homens e mulheres, certamente mais mulheres do que homens, gritava na rua: Theotókos! Theotókos! O sucessor de Celestino, o Papa Sixto III, dedicou uma basílica sob a invocação de Maria, Mãe de Deus — a conhecidíssima Basílica Romana de Santa Maria Maior.
E agora, para reunir e sintetizar todos os milhares de textos e de pronunciamentos feitos em louvor de Maria, a quem devemos um culto de singular veneração acima do que devemos aos Santos e aos Anjos, lembremos a ladainha de Nossa senhora, onde, em forma de oração, proclamamos seus dez títulos de Mãe, seus dez títulos de Rainha, seus títulos de excelsa perfeição, seus títulos de Virgem, seus títulos de refúgio e protetora — e com estas cinco prerrogativas a reconhecemos como Rainha dos céus e da terra.
Recomendamos aqui o opúsculo do saudoso Pe.Calmel O.P., Le Rosaire de Notre Dame, editado por Dominique Martin Morin Editeurs.
Quando pensamos em toda a maravilhosa beleza da obra sobrenatural que Deus compôs para a nossa salvação, e principalmente quando nos detemos na especial veneração daquela que é chamada «causa nostræ lætitiæ», aperta-nos o coração um sentimento de opressiva tristeza: dessa legião de humanistas que se deixam levar pelas reviravoltas antropocêntricas e que saboreiam o vômito de um Karl Rahner só nos resta dizer e repetir o tristíssimo estribilho: eles não sabem o que fazem, eles não sabem o que dizem, e sobretudo — meu Deus! — eles não sabem o que perdem.
Gustavo Corção - Revista Permanência N°100 Março 1977
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