terça-feira, abril 26, 2011

Páscoa com Vieira - IV e último


Pois que havemos de fazer no dia da Ressurreição de Cristo? Entristecer-nos? Tremer? Temer? Encerrar-nos? Sepultar-nos? Meter-nos vivos na sepultura, donde Cristo saiu? A esta pergunta não se pode responder do púlpito; do confessionário sim. Se estais em estado de pecado mortal, temei e tremei, e cause-vos grande tristeza a ressurreição; mas se estais em graça de Deus, e tendes propósitos firmes de a conservar, alegrai-vos, ponde a vossa alma e o vosso coração muito de festa, e não temais. Assim o disse o anjo às Marias: Nolite expavescere. Notai. Quando o anjo desceu do céu, e revolveu a pedra da sepultura, ficaram assombrados todos os guardas do Sepulcro, e o anjo não lhes disse: Nolite expavescere; e às Marias sim. E por que diz às Marias, que não o temam; e por que não diz o mesmo aos soldados? Porque as Marias iam buscar a Cristo ao Sepulcro para o perseguir, e para o afrontar. E aqueles que perseguem e que ofendem a Cristo, esses é bem que temam na Ressurreição; porém, aqueles que o amam, e que o servem, esses não têm que temer: Nolite expavescere. Tema Pilatos, que o condenou: tema Herodes, que o afrontou: tema Judas, que o vendeu: tema Caifás, que o blasfemou: e temam todos o que o perseguiram e o crucificaram, quando sabem que ele ressuscitou, e que eles também hão-de ressuscitar. Porém a Madalena e as outras Marias: a Madalena e as outras Marias, que o buscam e que o servem, que se não podem apartar dele, essas não têm que temer: Nolite expavescere. Não é esta razão menos que a do anjo: Nolite expavescere; Jesum quaeritis Nazarenum. Se vós buscais a Jesus Nazareno, não temais. A energia destas palavras ainda está mais clara em São Mateus , que neste passo é comentador de São Marcos: Nolite timere vos; scio enim quod Jesum, qui crucifixus est, quaeritis. Não temais vós: (notai muito a palavra vós) vós que buscais a Jesus, não temais; porém aqueles que não o buscam: aqueles que não o amam: aqueles que o ofendem, esses temam a sua Ressurreição. A Ressurreição para eles será morte e tormento eterno, assim como para vós será eterna vida, e eterna glória. Os maus porque hão-de ressuscitar mal, têm razão de temer, mas os bons, que hão-de ressuscitar bem, não têm para temer razão alguma.

E que grande alegria, e que grande consolação é para um verdadeiro cristão na festa da Ressurreição de Cristo considerar que também ele há-de algum dia ressuscitar! Que grande seria a alegria de Madalena, quando visse o seu irmão Lázaro ressuscitado! A nossa alma é a nossa Madalena: o nosso corpo é o nosso Lázaro. Que alegria será a de uma alma considerar agora e ver depois este seu corpo, este seu companheiro ressuscitado! Ainda esta comparação não explica. Que alegria seria a da Virgem Senhora, quando hoje visse ressuscitado em tanta formosura e glória a seu benditíssimo Filho! Esta comparação é a própria. A Madalena viu seu irmão ressuscitado, mas ressuscitado para tornar a morrer. A Senhora viu ressuscitado a seu Filho, mas para não morrer jamais: Mors illi ultra non domina itur. A Madalena viu a seu irmão ressuscitado, mas em corpo passível, como o que dantes tinha. A Senhora viu ressuscitado a seu Filho em corpo imortal, e impassível, e ornado com todos os quatro dotes gloriosos.

Padre António Vieira, no “Sermão da Ressurreição de Cristo”, pregado na Matriz da cidade de Belém do Pará, no ano de 1658

sábado, abril 23, 2011

Páscoa com Vieira - III


E a alma, que há-de fazer? O corpo, imitar; a alma, meditar: o corpo com os ramos da palma, a alma com os da oliveira. A alma nestes santos dias há-de fazer do coração um Monte Calvário, levantar nele um Cristo crucificado, e pôr-se desta maneira a contemplar suas dores. Oh quem pudera explicar-se agora com o pensamento, e falar com o silêncio! Quando os amigos de Job o foram visitar nos seus trabalhos, diz a Escritura Sagrada que estiveram uma semana inteira olhando só para ele, sem falarem palavra. Assim o hão-de fazer nossas almas esta semana, se são amigas de Jesus: olhar, calar e pasmar. Oh que vista! Oh que silêncio! Oh que admiração! Oh que pasmo! Só três coisas dou licença a nossas almas que se possam perguntar a si mesmas no meio desta suspensão. Quem padece? Que padece? Por quem padece? E que meditação esta para uma eternidade!

Quem padece? Deus, aquele ser eterno, infinito, imenso, todo-poderoso, aquele que criou o céu e a terra com uma palavra, e o pode aniquilar com outra; aquele, diante de cujo acatamento, os principados, as potestades e as dominações, e todas as hierarquias estão tremendo. Este Deus, cuja grandeza, este Deus, cuja majestade, este Deus, cuja soberania incompreensível só ele conhece inteiramente, e todos os entendimentos criados com infinita distância de nenhum modo podem alcançar, este, este é o que padece. Aqui se há-de fazer uma pausa, e pasmar. São Bernardo, cheio de pasmo e assombro nesta mesma consideração, rompeu dizendo: Ergo ne credendum est, quod iste sit Deus, qui flagellatur, qui conspuitur, qui crucifigitur? É possível que se há-de crer que este, que padece tantas injúrias e afrontas, e a mesma morte, é aquele mesmo Deus imortal, impassível, eterno, que não teve princípio, e é o princípio e fonte de todo ser? Este, este é; que nem ele fora Deus, nem a nossa fé fora fé, se ela não fizera, e nós não crêramos o que excede toda a capacidade humana. Por isso Isaías, quando entrou a falar da Paixão, como profeta que sobre todos era o mais eloquente, o exórdio por onde começou, foi aquela pergunta: Quis credidit auditui nostro (Is. 53,1)? Quem haverá que dê crédito ao que há-de ouvir de minha boca? Tão alheio é quem padece do que padece, e este é Deus. Vede se há bem de que pasmar aqui.

Depois de considerarmos que é Deus quem padece, então se segue a consideração do que padece. E não só havemos de trazer à memória o que já vimos que padeceu exteriormente em todos os sentidos do corpo, mas muito mais devemos considerar e ponderar o que padeceu no interior da alma e em todas suas potências. Com dois nomes, ou com duas semelhanças nos declarou nosso amorosíssimo Redentor o que padeceu em sua Paixão, com nome e semelhança de cálix, quando disse a S. Pedro: Calicem, quem dedit mihi Pater, non vis ut bibam illum (Jo. 18,11)? O cálix que me deu meu Padre,
não queres que o beba? E com nome e semelhança de Baptismo, quando disse a todos os discípulos: Baptismo habeo baptizari, et quomodo coarctor usque dum perficiatur (Lc. 12,50)? Eu hei-de ser baptizado em um baptismo, o qual desejo com grandes ânsias e aperto do coração até que chegue. De sorte que declarou o Senhor o que havia de padecer por nós, já chamando-lhe cálix, já baptismo, e porquê? Porque o baptismo recebe-se por fora, o cálix bebe-se por dentro, e Cristo, Redentor nosso, em toda sua Paixão não só padeceu por fora os martírios do corpo, senão também, e muito mais, por dentro os tormentos da alma. Por fora padeceu os tormentos dos açoites, dos espinhos, dos cravos, da lança, que o banharam todo em sangue, e por isso lhes chamou Baptismo; por dentro padeceu as tristezas, os tédios, os temores, as angústias e agonias, que, sem ferro, lhe tiraram também sangue no Horto, e lhe penetravam mortalmente a alma: Tristis est anima mea usque ad mortem.

Oh quem pudesse entrar profundamente no interior da alma de Jesus, e entender o que naquele consistório sacratíssimo e secretíssimo das suas três potências passava e se conferia em tantas horas! A memória, desde o princípio do mundo representava os pecados de todos os homens, por quem satisfazia a divina justiça; o entendimento ponderava o pouco número dos mesmos homens que se haviam de aproveitar do preço infinito daqueles tormentos, e a vontade se desfazia com dor de ver perder tantas almas por sua culpa, sem achar consolação alguma a tamanha perda; e esta era a tristeza que ocupava toda a alma do Salvador, e com três cravos mais agudos e penetrantes a crucificava. Aqui havemos de fazer a segunda pausa, e pasmar tanto daquele infinito amor, como da nossa infinita cegueira. Oh Senhor, quantos pode ser que vísseis então, dos que agora se acham nesta mesma igreja, que, por que haviam de desprezar e condenar as suas almas, agonizavam a vossa! Considere cada um se porventura, ou eterna desventura, é algum destes, e veja bem o seu perigo, enquanto tem tempo.

Este é o Deus que padece, estas as penas e dores que padece, e só resta ver por quem padece. Se a fé me não ensinara outra coisa, cuidara eu que padecia Deus pelo céu, porque vejo o sol eclipsado e coberto de luto; cuidara que padecia pela terra, porque a vejo tremer e arrancar-se de seu próprio centro; cuidara que padecia pelas pedras, porque as vejo quebrarem-se umas com outras e abrirem-se as sepulturas; cuidara que padecia pelo Templo de Jerusalém, porque vejo rasgar-se de alto a baixo o véu do Sancta Sanctorum; cuidara que padecia por este mundo elementar, porque vejo confusos, perturbados, atónitos e com prodígios de sentimento e assombro todos os elementos. Mas não são estas as criaturas por quem padece Deus, posto que todas confessam que padece seu Criador; e, com serem irracionais e insensíveis, quiseram acabar com ele quando o vêem morrer. Quem são logo aqueles por quem padece o Autor da natureza, e por quem morre o Autor da vida? Sou eu, sois cada um de vós, e somos todos os homens. Por nós, e só por nós padece Deus; por nós, e só por nós padece quanto padece. Por nós que, depois de nos criar, o não respeitamos; por nós que, depois de nos sustentar, o não servimos; por nós que, depois de nos remir, o não obedecemos; por nós que, depois de morrer por nosso amor, o não amamos; por nós que, depois de se pôr em uma cruz por nós, o tornamos a crucificar mil vezes; por nós que, esperando-nos assim, e chamando-nos com os braços abertos, não queremos acudir a suas vozes; por nós, enfim, que, sabendo que nos há-de julgar, e nos prometeu o céu, se o não ofendermos, queremos antes o inferno sem ele, que o céu com ele. Isto é o que faz todo o homem que peca mortalmente, e isto o que continua a fazer enquanto se não tira do pecado, para que vejais se tem razão, não só de pasmar, mas de perder o juízo.

Padre António Vieira, no “Sermão de Dia de Ramos”, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656.

Páscoa com Vieira - II


Suposto pois, cristãos, que este é o tempo, e suposto que os dias são tão precisos que não temos outros para que apelar, o que resta é recuperar o perdido, e que nos aproveitemos deles com tais actos de verdadeira contrição e devoção, que esta Semana Santa, como o é em si, seja em nós também santa. Os ramos que cortaram das árvores os que hoje saíram a receber a Cristo: Caedebant ramos de arboribus, posto que São Mateus não declare quais fossem, São João diz que eram de palma, e São Lucas de oliveira. E com os dois afectos que estes ramos significavam, devemos nós seguir e acompanhar o Senhor em todos seus passos, oferecendo estes humildes obséquios a seus sacratíssimos pés, que isto quer dizer: Et sternebant in via. A palma é símbolo da paciência, como a oliveira da misericórdia e compaixão; e tais eram os dois mistérios que encerrava o aparato e diferença daqueles ramos: padecer e compadecer. Desta maneira receberemos e acompanharemos a nosso bom Rei e Redentor muito melhor que a ingrata e inconstante Jerusalém, se não só hoje, mas todos estes dias, padecermos alguma coisa com ele, e nos compadecermos dele. Tudo resumiu São Paulo a uma só palavra, quando disse: Si tamen compatimur. Uma coisa é compadecer, e outra padecer com: compadecer, é compadecer dele; padecer com, é padecer com ele; e tanto nos merecem a paciência as suas penas, como a compaixão o seu amor. Toda a sua sagrada humanidade do corpo e alma de Cristo nos mereceu sempre muito, mas nunca tanto como nestes dias: padecendo na imitação de seus tormentos, acompanharemos seu santíssimo corpo, e compadecendo-nos na meditação de suas dores, acompanharemos sua santíssima alma.

Digo pois, quanto ao corpo, que havemos nesta semana de procurar padecer alguma coisa em todos os cinco sentidos, assim como Cristo padeceu em todos. Adão e Eva, em um só pecado, pecaram com todos os cinco sentidos. Pecaram com o ouvir, ouvindo a serpente; pecaram com o ver, olhando para a fruta; pecaram com o palpar, tirando-a; pecaram com o cheirar, cheirando-a; pecaram com o gostar, comendo-a. Com todos os cinco sentidos pecaram nossos primeiros pais, e nós, tão herdeiros de suas misérias como de suas culpas, em todos pecamos infinitas vezes. E como Cristo vinha pagar pelo pecado de Adão e pelos nossos, quis padecer também em todos os cinco sentidos.

Padeceu no sentido de ver, vendo fugir a todos seus discípulos: vendo que um o entregou tão aleivosamente; vendo que outro o negou três vezes; vendo-se atar e levar preso, e a tantos tribunais; vendo-se tapar os olhos; vendo-se despir no Pretório, e estar despido no Calvário tantas horas à vista de todo o mundo, e no meio de dois ladrões; sobretudo, vendo a desconsolada Mãe ao pé da cruz, em cujo coração e em cujos olhos estava outras três vezes crucificado. Finalmente, vendo os meus pecados e os vossos, com que tão ingratos havíamos de ser a tanto amor, que todos naquela hora lhe eram presentes.

Padeceu no sentido do ouvir, ouvindo o Deus te salve aleivoso da boca de Judas; ouvindo os crimes e testemunhos falsos com que foi acusado; ouvindo as vozes e brados com que os mesmos que hoje o aclamaram rei lhe pediam a morte; ouvindo a sentença com que o iníquo juiz o entregou à vontade de seus inimigos; ouvindo o pregão de malfeitor e alvorotador do povo; ouvindo as injúrias e blasfémias dos príncipes dos sacerdotes na cruz, e as dos mesmos ladrões que com ele estavam crucificados, e não ouvindo em todo este tempo uma só palavra de consolação aquele mesmo Senhor que com palavras e obras tinha consolado a tantos.

Padeceu no sentido do olfacto, ou de cheirar, porque morreu entre os ascos e horrores do Monte Calvário, chamado assim das caveiras e ossos dos malfeitores que ali se justiçavam, os quais, ou porque os enterravam mal os algozes, ou porque depois os desenterravam os cães, estavam espalhados por todo o monte, e de mistura com a corrupção do sangue faziam aquele infame lugar horrendo, hediondo, asqueroso e insuportável ao cheiro. E como divino pagador de nossos pecados, não só escolheu o género da morte, senão também a circunstância do lugar; para satisfazer nele pelos excessos do olfacto, quis que fosse tão infeccionado e malcheiroso.

Padeceu no sentido do gosto, não só pelo fel e vinagre que lhe deram a beber, senão muito mais por aquela ardentíssima sede, maior incomparavelmente que todos os outros tormentos, porque só ela obrigou ao pacientíssimo Redentor a pedir alívio. Mas podendo mais o desejo de padecer por nós, que a força da natureza na humanidade enfraquecida e exausta, provou o azedo do vinagre e o amargoso do fel, para mortificar o gosto, e não quis levar para baixo o húmido, para não moderar o ardor, nem aliviar a sede.

Padeceu, finalmente, no sentido do tacto, não ficando em todo o sagrado corpo parte alguma que não fosse martirizada com particular tormento. Padeceu nos braços as cordas e cadeias, no rosto as bofetadas, na cabeça a coroa de espinhos, nos ombros o peso da cruz, nas costas os milhares de açoites, nas mãos e nos pés os cravos, e em todos os ossos, em todos os nervos, em todas as veias, em todas as artérias a suspensão, a aflição, a violência mais que mortal de estar três horas no ar pendente de um madeiro até expirar nele.

Pois, se estes são os dias em que o meu Deus padeceu tão cruelmente em todos os cinco sentidos, e tão amorosamente por mim, não será justo que eu também em todos os sentidos padeça alguma coisa por ele? Nenhum coração me parece que haverá tão ingrato e tão insensível, que se não deixe mover desta razão: Hoc enim sentite in vobis, quod et in Christo Jesu (Flp. 2,5), diz São Paulo: O que Cristo Jesus sentiu em si, devemos nós sentir em nós - ele por amor de nós, e nós por amor dele. E se a vossa devoção deseja saber e me pergunta de que modo poremos em prática este recíproco sentimento, mortificando-nos também em todos os nossos sentidos, digo primeiramente que mortifiquemos o ver, andando nestes dias com grande modéstia e recato, e negando aos olhos as vistas de todas as criaturas, e apartando-os principalmente daquelas que mais nos agradam e mais nos apartam de Deus. Os olhos têm dois ofícios: ver e chorar; e mais parece que os criou Deus para chorar que para ver, pois os cegos não vêem e choram. Já que tantos dias damos aos olhos para ver, já que tão cansados andam os nossos olhos de ver, não lhes daremos alguns dias de férias, para que descansem em chorar? Chorem os nossos olhos os nossos pecados nestes dias, e chorem muito em particular o não haverem antes cegado que ofendido a Deus. Ah! Senhor, quanto melhor fora não ter olhos, que ter-vos ofendido com eles!

O sentido de ouvir mortificá-lo-emos, retirando-nos esta semana de todas as práticas e conversações, não só ilícitas e ociosas, mas ainda das lícitas. Troquemos o ouvir pelo ler, lendo todos estes dias algum livro espiritual em que Deus nos fale e nós o ouçamos. A quem não está muito exercitado no orar, é mais fácil o ler, e muitas vezes mais proveitoso. Na oração falamos nós com Deus; na lição fala Deus connosco. E de quantas coisas - que fora melhor não ouvir - ouvimos todo o ano aos homens; estes dias ao menos, bem é que ouçamos a Deus.

No sentido do olfacto pouco têm que mortificar os homens nesta terra, porque não vejo nela este vício. Nas mulheres, se nelas há alguma demasia, lembrem-se de que nesta semana derramou a Madalena os seus cheiros e os seus unguentos aos pés de Cristo. E para os aborrecerem e detestarem para sempre, saibam que a última disposição da morte do mesmo Senhor foram estes cheiros. Porque a Madalena derramou os unguentos, se excitou a cobiça de Judas; porque em Judas se excitou a cobiça, tratou da venda; porque vendeu a seu Mestre, o prenderam e o mataram. Por isso o Senhor disse - e este é o sentido literal: Mittens haec unguentum hoc in corpus meum, ad sepeliendum me fecit, como se dissera: Estes unguentos são para a minha sepultura, porque destes unguentos se me há-de ocasionar a morte.

O sentido do gosto, ainda que se tenha mortificado por toda a Quaresma com o jejum ordinário, nestes dias é bem que haja para ele alguma particular mortificação. Muitos santos do ermo passavam esta semana inteira sem comer, e pessoas de mui diferente estado, não no ermo, senão nas cortes, passam em jejum de quinta-feira até sábado. Nos maiores dias desta semana é estilo das mesas dos grandes príncipes não se porem nelas mais que ervas; para estes dias se fizeram propriamente os jejuns de pão e água: ao menos estes dias não são para regalo. O cordeiro mandava Deus que se comesse com alfaces agrestes, porque o agreste e desabrido no comer destes dias é a melhor disposição para comer quinta-feira o Divino Cordeiro sacramentado.

O sentido do tacto, como o mais vil e mais delinquente que todos, é razão que seja nestes dias mais mortificado. Quando Urias veio do exército com aviso a el-rei David, disse-lhe o rei que fosse descansar à sua casa. E ele, que respondeu? E bem, Senhor: está o meu general dormindo sobre a terra na campanha, e eu que me haja de deitar em cama? Não farei tal desprimor. E foi-se deitar em uma tábua no corpo da guarda. A cama em que dormiu o último sono da morte o nosso Jesus, bem sabeis qual foi. Pois, será justo que quando ele tem por cama o duro madeiro da cruz, descanse o nosso corpo tão regaladamente como nos outros dias? Alguma diferença é bem que haja nestes. Ao menos o nosso rei e seus filhos, de quinta-feira até domingo não se deitam em cama, nem se assentam, senão no chão, assistindo sempre ao Senhor, sem sair nunca da Capela Real, nem de dia, nem de noite. Estas são as noites e os dias para que se fizeram as penitências: para estas noites se fizeram os pés descalços, para estas noites as disciplinas, e para estes dias e para estas noites os cilícios.

Padre António Vieira, no “Sermão de Dia de Ramos”, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656.

quinta-feira, abril 21, 2011

O mistério da divina redenção


Com efeito, o mistério da divina redenção é, antes de tudo e pela sua própria natureza, um mistério de amor: isto é, um mistério de amor justo da parte de Cristo para com seu Pai celeste, a quem o sacrifício da cruz, oferecido com coração amante e obediente, apresenta uma satisfação superabundante e infinita pelos pecados do género humano: Cristo, sofrendo por caridade e obediência, ofereceu a Deus alguma coisa de valor maior do que o exigia a compensação por todas as ofensas feitas a Deus pelo género humano. Além disso, o mistério da redenção é um mistério de amor misericordioso da augusta Trindade e do divino Redentor para com a humanidade inteira, visto que, sendo esta totalmente incapaz de oferecer a Deus uma satisfação condigna pelos seus próprios delitos, mediante a imperscrutável riqueza de méritos que nos ganhou com a efusão do seu precioso sangue, Cristo pôde restabelecer e aperfeiçoar aquele pacto de amizade entre Deus e os homens violado pela primeira vez no paraíso terrestre por culpa de Adão e depois, inúmeras vezes, pela infidelidade do povo escolhido. Portanto, havendo na sua qualidade de nosso legítimo e perfeito mediador, e sob o estímulo de uma caridade energética para connosco, conciliando as obrigações e compromissos do género humano com os direitos de Deus, o divino Redentor foi, sem dúvida, o autor daquela maravilhosa reconciliação entre a divina justiça e a divina misericórdia, a qual justamente constitui a absoluta transcendência do mistério da nossa salvação, tão sabiamente expresso pelo doutor angélico com estas palavras: "Convém observar que a libertação do homem, mediante a paixão de Cristo, foi conveniente tanto para a justiça como para a misericórdia do mesmo Cristo. Antes de tudo para a justiça, porque com a sua paixão Cristo satisfez pela culpa do género humano, e, por conseguinte, pela justiça de Cristo foi o homem libertado. E, em segundo lugar, para a misericórdia, porque, não sendo possível ao homem satisfazer pelo pecado, que manchava toda a natureza humana, deu-lhe Deus um reparador na pessoa de seu Filho. Ora, isto foi, da parte de Deus, um gesto de mais generosa misericórdia do que se ele houvesse perdoado os pecados sem exigir qualquer satisfação. Por isso está escrito: 'Deus, que é rico em misericórdia, movido pelo excessivo amor com que nos amou quando estávamos mortos pelos pecados, deu-nos vida juntamente em Cristo'" (Ef 2, 4).

Papa Pio XII, Encíclica “Haurietis Aquas”, de 15 de Maio de 1956

Páscoa com Vieira - I


No Evangelho temos a Cristo triunfante em Jerusalém; naquele altar temos a Cristo triunfante no Egipto: justo é senhores, que entre também Cristo triunfando, ou pelo Egipto ou pela Jerusalém de nossas almas. Que outra coisa é uma alma, onde se está levantando altar a Vénus, ídolo da torpeza; onde se fazem sacrifícios a Marte, ídolo da vingança; onde é adorado Júpiter, ídolo da vaidade: que coisa é, digo, uma alma destas, senão um Egipto idólatra? Entre pois Cristo triunfando pelo Egipto desta alma: Et commovebuntur à facie ejus simulacra Aegypti, e caiam e rendam-se a seus pés todos esses ídolos. Caia a torpeza, caia a vingança, caia a vaidade, e acabem-se idolatrias tão pouco cristãs. Que coisa é, por outro modo, uma alma onde reina a ambição, onde dá leis a inveja, onde manda tudo o ódio, que coisa é, torno a dizer, uma alma destas, senão uma Jerusalém depravada e perdida, e onde por ódio, por ambição e por inveja se dá sentença de morte contra o mesmo Cristo? Ora pois, Jerusalém, Jerusalém, convertere ad Dominum Deum tuum; acabem-se ódios, acabem-se invejas, acabem-se ambições: caiam todos esses vícios aos pés de Cristo, e levantem-se palmas nas mãos em sinal de vitória: Acceperunt ramos palmarum, et exierunt obviam ei.

Não duvido que o façam assim todos os que têm nome de cristãos, não movidos da eficácia de minhas razões, mas obrigados da santidade do tempo. Entramos na Semana Santa, em que nenhum cristão há de tão fraca fé, e de tão fria piedade, que não se lance rendido aos pés de Cristo. O que porém quisera eu encomendar e saber persuadir a todos é, que nos não aconteça o que aconteceu aos que acompanharam Cristo no seu triunfo. É advertência de S. Bernardo. Quando o Senhor ia passando pelas ruas de Jerusalém, tiravam muitos as capas dos ombros, para que o Senhor passasse por cima delas; porém tanto que o mesmo Senhor tinha passado, tornava cada um a levantar a sua capa, e pô-la outra vez nos ombros como dantes. O mesmo nos acontece a nós nesta semana. Despimos, ou parece que despimos, os maus hábitos de nossos vícios, lançamo-los aos pés de Cristo, para que passe por cima deles com a cruz às costas; porém tanto quanto passou, tanto que se acabou a Semana Santa, e chegou a Páscoa, torna cada um aos mesmos vícios, e a revestir-se deles, como se já não foram pecados. Oh sepultemo-los para sempre com Cristo morto, e deixemos estes maus hábitos, como Cristo deixou as mortalhas na sua sepultura. Façamos diante daquela Senhora uns propósitos e resoluções muito firmes de ser perpétuos escravos seus e de seu benditíssimo Filho, seguindo-o e servindo-o sempre e em qualquer parte; ou no Egipto, como desterrados deste mundo, ou em Jerusalém, como mortos ao mesmo mundo: não havendo trabalho ou felicidade, nem fortuna tão próspera ou adversa, que nos aparte de seu serviço, de sua obediência, de seu amor e de sua graça, para que vivendo e morrendo com ele e por ele, o acompanhemos na vida, onde não há morte, por toda a eternidade. Amen.

Padre António Vieira, no “Sermão do Sábado antes da Dominga de Ramos”, pregado na Igreja de Nossa Senhora do Desterro, na Baía, no ano de 1634

sexta-feira, abril 08, 2011

A compra da República


Nova Iorque, 22 de Março

Este mês, comprei uma República. Capricho caro que não terá imitadores. Era um desejo que tinha há muito tempo e quis livrar-me dele. Imaginava que ser dono de um país dava mais prazer.

A ocasião era boa e o assunto foi resolvido em poucos dias. O presidente estava com a corda na garganta; o seu ministério, composto de clientes seus, era um perigo. Os cofres da República estavam vazios; lançar novos impostos teria sido o sinal para a destituição de todo o clã que estava no poder e talvez para uma revolução. Já existia um general que estava a armar bandos irregulares e prometia cargos e empregos ao primeiro que chegava.

Um agente americano que se encontrava no local avisou-me. O ministro da Fazenda correu a Nova Iorque; em quatro dias pusemo-nos de acordo. Adiantei alguns milhões de dólares à República e fixei, além disso, subsídios equivalentes ao dobro dos que recebiam do Estado, ao presidente, a todos os ministros e aos seus secretários. Deram-me, como garantia - sem que o povo o saiba - as alfândegas e os monopólios. Além disso, o presidente e os ministros firmaram um “covenant” secreto que me concede, praticamente o “contrôle” sobre a vida da República. Embora eu pareça, quando ali vou, um simples hóspede de passagem, sou, na realidade, o dono quase absoluto do país. Por estes dias, tive de dar uma nova subvenção, bastante avultada, para a renovação do material do Exército e, em compensação, obtive novos privilégios.

O espectáculo é, para mim, muito divertido. As câmaras continuam a legislar livremente, na aparência; os cidadãos continuam a imaginar que a República é autónoma e independente e que à sua vontade se subordina o curso das coisas. Não sabem que tudo quanto supõem possuir - vida, bens, direitos civis - depende, em última instância, de um estrangeiro desconhecido para eles, isto é, de mim.

Amanhã, posso ordenar o encerramento do Congresso, uma reforma da Constituição, o aumento das tarifas aduaneiras, a expulsão dos imigrados. Poderia, se me aprouvesse, revelar os acordos secretos da camarilha ora dominante e derrubar, assim, o governo, desde o presidente ao último secretário. E não me seria impossível obrigar o país que tenho sob a minha mão a declarar uma guerra a uma das Repúblicas limítrofes.

Este poder oculto e ilimitado faz-me passar umas horas agradáveis. Sofrer todos os incómodos e o servilismo da comédia política é uma fadiga bestial; mas ser o movimentador de títeres que, detrás dos cenários, pode divertir-se a puxar os cordelinhos dos fantoches obedientes, é uma volúpia única. O meu desprezo pelos homens encontra um alimento saboroso e mil confirmações.

Não sou mais do que o rei incógnito de uma pequena República em desordem; mas a facilidade com que logrei dominá-la e o evidente interesse de todos os iniciados em conservar o segredo faz-me pensar que outras nações, talvez mais vastas e importantes do que a minha República, vivem, sem se aperceberem, debaixo de análoga dependência de soberanos estrangeiros. Sendo necessário mais dinheiro para a sua aquisição, tratar-se-á, em vez de um só dono, como no meu caso, de um “trust”, de um sindicato de negócios, de um grupo restrito de capitalistas ou banqueiros.

Mas tenho fundadas suspeitas de que outros países são governados por pequenos comités de reis invisíveis, apenas conhecidos pelos seus homens de confiança, que continuam a desempenhar com na naturalidade o papel dos chefes legítimos.

Giovanni Papini, in “Gog”, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, páginas 137 e 138.

O que sucedeu a Portugal?


O Padre Nuno Serras Pereira dá-nos a melhor resposta neste “O Termo Adequado”. A ler também, num “Rorate-Caeli” sempre bem informado acerca da realidade portuguesa, este “Papal Reminder”. Os dois artigos completam-se.