Li no passado Domingo a entrevista que o Papa Francisco concedeu à “Civiltà Cattolica”: não gostei dela, mas a mesma não me causou qualquer surpresa. Como já escrevi em momento anterior, Francisco continua a ser Bergoglio e a pensar e a agir como Bergoglio sempre pensou e agiu, orientando-se por uma linha de pensamento evolucionista, imanentista e antitradicional, ou seja, modernista e progressista. E à maneira modernista e progressista, sem jamais defender abertamente posturas antimagisteriais em questões como o aborto, a homossexualidade, a anticoncepção artificial e a ordenação sacerdotal de mulheres, Francisco consegue ser ambíguo o suficiente para minar perante o mundo a posição dos que defendem a ortodoxia católica nestas matérias, desencorajando-os, desmotivando-os ou desmoralizando-os perante o inimigo.
De resto, o que ressalta mais negativamente é a duplicidade de critérios com que o Papa encara:
- por um lado, todos os que com maior ou menor culpa, católicos ou não, cederam perante pecados tão graves como o aborto ou a homossexualidade, manifestando-lhes uma compreensão, uma leniência e uma brandura no limite da permissividade e do indiferentismo;
- por outro lado, todos os católicos que tentam orientar a sua vida, com maior ou menor sucesso, em conformidade com os ditames da tradição, demonstrando quanto a estes um rigor, uma severidade e uma dureza a roçar o desprezo puro e simples.
Acerca dos primeiros, Francisco afirma:
Devemos anunciar o Evangelho em todos os caminhos, pregando a boa nova do Reino e curando, também com a nossa pregação, todo o tipo de doença e de ferida. Em Buenos Aires recebia cartas de pessoas homossexuais, que são “feridos sociais”, porque me dizem que sentem como a Igreja sempre os condenou. Mas a Igreja não quer fazer isto. Durante o voo de regresso do Rio de Janeiro disse que se uma pessoa homossexual é de boa vontade e está à procura de Deus, eu não sou ninguém para julgá-la. Dizendo isso, eu disse aquilo que diz o Catecismo. A religião tem o direito de exprimir a própria opinião para serviço das pessoas, mas Deus, na criação, tornou-nos livres: a ingerência espiritual na vida pessoal não é possível. Uma vez uma pessoa, de modo provocatório, perguntou-me se aprovava a homossexualidade. Eu, então, respondi-lhe com uma outra pergunta: “Diz-me: Deus, quando olha para uma pessoa homossexual, aprova a sua existência com afecto ou rejeita-a, condenando-a?” É necessário sempre considerar a pessoa. Aqui entramos no mistério do homem. Na vida, Deus acompanha as pessoas e nós devemos acompanhá-las a partir da sua condição. É preciso acompanhar com misericórdia. Quando isto acontece, o Espírito Santo inspira o sacerdote a dizer a coisa mais apropriada (destaques meus).
Porém, sobre os segundos, em especial os fiéis do rito latino-gregoriano, o mesmo Francisco declara:
O Vaticano II foi uma releitura do Evangelho à luz da cultura contemporânea. Produziu um movimento de renovação que vem simplesmente do próprio Evangelho. Os frutos são enormes. Basta recordar a liturgia. O trabalho da reforma litúrgica foi um serviço ao povo como releitura do Evangelho a partir de uma situação histórica concreta. Sim, existem linhas de hermenêutica de continuidade e de descontinuidade. Todavia, uma coisa é clara: a dinâmica de leitura do Evangelho no hoje, que é própria do Concílio, é absolutamente irreversível. Depois existem questões particulares, como a liturgia segundo o Vetus Ordo. Penso que a escolha do Papa Bento XVI foi prudente, ligada à ajuda a algumas pessoas que têm esta sensibilidade particular. Considero, no entanto, preocupante o risco de ideologização do Vetus Ordo, a sua instrumentalização (destaques meus).
Aqui chegados, é triste constatar que o actual Papa deforma e reduz o alcance do “Summorum Pontificum” a um auxílio prestado a um grupo de tontinhos inadaptados. E mais triste é que diga haver quem ideologize e instrumentalize o “Vetus Ordo”, sem todavia especificar quem sejam essas pessoas e no que consiste a ideologização e instrumentalização a que alude.
Porventura, Francisco não conceberá que os fiéis do rito tradicional latino-gregoriano estejam de boa vontade, procurem Deus e que esse rito seja um poderoso auxiliar em tal demanda? Bento XVI compreendeu esta factualidade; pelo contrário, o seu sucessor recusa-se a entendê-la… Não pode deixar-se de lamentar esta última posição, sobretudo porque tomada em quem paradoxalmente, em momento mais avançado da entrevista, diz que “Na música gosto muito de Mozart, obviamente. Aquele “Et Incarnatus est” da sua Missa em Dó é insuperável: leva-te a Deus!” Ora, será que para o corrente Papa apenas uns quantos privilegiados e eleitos podem ser conduzidos a Deus pelo “Et Incarnatus est”?.. Custa a crer…
Todavia, não se fica por aqui a infeliz arremetida efectuada por Francisco contra os católicos tradicionais. Para quem sendo Papa declara não ser ninguém para julgar os homossexuais bem intencionados que procuram Deus, há que estranhar muito as palavras que abaixo se citam, as quais soam tão pouco caridosas, tão eivadas de juízos preconcebidos, de raciocínios apriorísticos e de retratos caricaturais sem correspondência na realidade das coisas. Assim:
Se o cristão é restauracionista, legalista, se quer tudo claro e seguro, então não encontra nada. A tradição e a memória do passado devem ajudar-nos a ter a coragem de abrir novos espaços para Deus. Quem hoje procura sempre soluções disciplinares, quem tende de modo exagerado à “segurança” doutrinal, quem procura obstinadamente recuperar o passado perdido, tem uma visão estática e involutiva. E deste modo a fé torna-se uma ideologia entre tantas.
Perante isto, é legítimo perguntar-se: e todos os que possuem uma visão dinâmica e evolutiva, quantas vezes impregnada de “animus delendi” e de “animus injuriandi”, desprezando em absoluto as soluções disciplinares e descurando por completo a integridade doutrinal, supondo que o homem dito contemporâneo é ontológica e axiologicamente distinto dos homens de épocas transactas, não têm eles próprios uma “fé” que mais não é do que uma ideologia entre tantas outras?..
Quanto ao resto, conforme referi logo desde o início, não gostei desta entrevista. Nela, o Santo Padre revela-se não um pai, mas um padrasto. O tom de conversa de botequim para que a mesma amiúde resvala também não a ajuda nada, chegando a ter momentos - como aquele em que Francisco apoda de “solteirões” uma parte dos religiosos consagrados - verdadeiramente surreais.
Enfim, para terminar, lastimo profundamente que um Papa jesuíta e argentino, numa entrevista a uma importantíssima revista jesuíta, haja omitido nas referências literárias que fez a figura do Padre Leonardo Castellani. Omissão certamente deliberada e intencional em alguém que está infelizmente cada vez mais parecido, a cada dia que passa, com Monsenhor Panchampla, personagem do livro “Su Majestad Dulcinea”, de autoria de… Castellani, a qual é o arquétipo caricatural acabado do prelado progressista.