Em cumprimento do que havia prometido ao Buiça, aqui fica mais um texto de António Sardinha, retirado de "Na Feira dos Mitos", originalmente publicado em 1926:
"Compreende-se, pois, o sentido social e político do "tradicionalismo". Se, por exemplo, se fala no municipalismo português, ninguém pensa em voltar aos forais, tal como a Idade Média os concebeu, nem aos procuradores das vilas, recebidos em Cortes por procuração passada em termos imperativos. O que se pretende é conservar esse apreciável instinto localista que assegura de per si a realização de mais saudáveis medidas descentralizadoras no interesse do Estado e no aproveitamento das diversas representações regionais e provinciais. Deste modo, a política é para nós uma realidade, - uma como que experiência, garantida e comprovada pelo decurso da história.
A história - e não as nossas predilecções doutrinárias - é que nos deve guiar na determinação do regime que mais convém aos destinos de uma nacionalidade. Já Taine asseverava que não deviam existir "constituições" escritas. O que existe é uma "constituição" ditada pelo passado e que sendo a segunda natureza de um povo, não aliena com ela as condições de vida do mesmo povo.
Reputo definido o verdadeiro, o rigoroso conceito da "Tradição". Antecipando-se ao seu tempo, o senhor de Bonald declarava há mais de um século que as instituições do passado não eram boas por serem antigas, mas eram antigas por serem boas. Eis aqui o fundamento positivo do "tradicionalismo". Non nova, sed nove. A "Tradição" para nós não vale sentimentalmente, como as ruínas valiam para os românticos, - como uma quantidade morta, que a saudade encheu do seu perfume estranho. Não, leitor amigo! A "Tradição" vale, sobretudo, como a permanência na continuidade. Corresponde àquela ideia directriz que já Claude Bernard assinalava como presidindo ao desenvolvimento dos seres. Quebrá-la é cortar a sequência hereditária, romper os antecedentes morais e sociais de que somos um elo aditivo. Regressar à "Tradição" não é, portanto, regressar a um ponto interrompido, já a sumir-se além, nas nuvens da distância. É antes inseri-nos nos moldes próprios da nacionalidade, mas na altura precisa em que estaríamos hoje se a ruptura não se tivesse produzido. Numa palavra e conforme Paul Bourget: - o doente que delira a 40º de febre, não recua, se recupera a temperatura normal. Bem pelo contrário, ele progride. Restituir ao nosso país o seu meio-vital obliterado, o mesmo é que restituir ao doente o seu estado anterior de saúde. Tal é o valor da "Tradição", como nós a olhamos e a ciência o acredita.
(…)
Acentuemo-lo bem na hora que passa, para que as inteligências bem dotadas se compenetrem da actualidade da nossa aspiração e da sua plena concordância com as correntes mais notáveis do pensamento moderno. É como teremos respondido aos que nos imaginam divorciados da marcha da sociedade, passeando o nosso suposto arcaísmo sobre uma paisagem de forcas e de fogueiras inquisitoriais!"
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