Amamos a vida, porque grita e estua dentro de nós. Mas amamos a vida no equilíbrio, na saúde, - na posse dela própria. Amamos a vida, vivendo-a. E vivê-la não é estilizá-la, nem desperdiçá-la. É referi-la a nós mesmos, é dar-lhe um sentido de actualidade e permanência. Não a colocamos nem no Passado, nem na Imaginação, - como a colocavam os avós literários de 1830. Muito menos a passeamos pelos terraços da Decadência, sonhando, em atmosferas de paradoxo e haxixe, uma beleza falsa de Paraíso-Artificial!
A vida para nós é uma utilidade. Mas confira-se à palavra utilidade um significado de nobreza. É uma utilidade que não nos pertence e que é preciso servir. "Non serviam!" - foi o grito rebelado de quantos apareceram primeiro que nós. Servir! - é agora a ânsia mais funda do nosso coração, em que parece frutificar a semente de um misticismo novo. Por isso surgimos no momento máximo duma crise já secular. E logo nos tocou o gosto admirável da ordem, - como que um inesperado instinto de higiene interior e de arranjo social. Ia-se abaixo, num estridor de catástrofe, o património histórico da nacionalidade. Dentro de nós, ressuscitou a psicologia ingénua de "Petit-Chose", jurando ao desalento da sua trapeira reconstruir o lar em ruínas. Foram diversas as jornadas que nos trouxeram a esta unidade de corpo e alma, que é o segredo da nossa vitória. Uns pegaram em armas e andaram rilhando a côdea dura dos guerrilheiros pelas ribas ásperas do exílio. Outros padeceram a agonia da própria mentira e só à custa de suores de sangue encontraram a sua estrada de Damasco. Hoje, (…) existe uma vontade em nós, porque em nós existe uma crença.
António Sardinha - Ao Ritmo da Ampulheta - 1923
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