Na sacristia, tira a estola e a sobrepeliz, lava a ponta dos
dedos numa baciazita, e começa a paramentar-se: põe nos ombros o amito puído;
veste a alva de linho onde há pontéus toscos, e a renda, de dois palmos fartos,
engomada, é rija como sola; cinge e ata o cordão que a segura num refego;
empunha o manípulo no pulso esquerdo; cruza no peito a estola amarelecida pelos
anos; enfia pela cabeça a casula de damasco branco, na última! Toma o Cálix
coberto com véu branco e a quadrada bolsa dos corporais; e, abrindo difícil
passagem por entre os muitos devotos que se entalam, encaminha-se para a
capela-mor. Sobe os degraus do altar. Implora, contrito, a remissão dos seus
pecados. Coloca o Cálix do lado do Evangelho, e, um momento recolhido, pensa
comovidíssimo:
“Que gosto meus pais teriam de assistir a esta Missa-Nova,
que pecados meus impediram ouvissem! Deus me perdoe e eles descansem em paz na
Luz Perpétua!”
Desdobra sobre a Pedra de Ara o corporal alvíssimo; poisa
nele o Cálix; ajeita o véu; faz uma sentida reverência à cruz; desce dois
degraus no supedâneo, volta-se, benze-se, e logo diz, penetrado de comoção, com
voz humílima:
- Introibo ad altare Dei.
Segue-se o Salmo: Judica me. Sobe. Reza. Beija a Pedra de
Ara (o primeiro beijo sacerdotal da sua vida de presbítero) - quanto amor!
Lê a epístola.
O sacristãozinho muda o missal para a esquerda. Todos se
erguem com ruído de botas cardadas. A meia voz, o Ministro do Senhor lê o seguimento
e Evangelho de S. Lucas, referente à Anunciação. Terminada a leitura, o Dr.
Gabriel Alvim, de costas para a Sacra de S. João Evangelista, no meio do silêncio
intenso de ansiada expectativa, pronuncia, grave e afável:
- Cum electo, electus eris.
São palavras da Sagrada Escritura, que querem dizer: “com o
puro serás puro”, ou de outra maneira: “entre gente boa, serás bom”. Portanto
poderei dizer de mim para mim: serei puro, porque sei que estou com bons. Deus
seja louvado!
Não sou eu que venho santificar-vos, sois vós que me
santificareis. Desde já grato, felicito-me por encontrar nesta linda aldeia
branca, voltada ao sol nascente, de ar limpo, entre montanhas, a mais afastada
do centro desta diocese. A todos cumprimento, afirmando-lhes a minha profunda
dedicação, e a todos agradeço, do fundo da alma, a maneira festiva e carinhosa
como me receberam e quiseram e souberam, com muito lindas flores, adornar estes
altares, e como que remoçar de alegria devota as velhas pedras desta
antiquíssima igrejinha contemporânea dos nossos primeiros reis. Muito e muito
obrigado.
Aquela gente, simples e sentimental, logo se sentiu invadida
por uma onda de simpatia conquistadora, a qual galvanizou todos os corações.
Respirava-se na atmosfera o hálito do afecto e cheirava a bem-querer.
(…)
E a missa continuou:
Pronunciado, com afirmação convicta, o Credo; saudado o
povo, com cordial Dominus vobiscum; lido o Ofertório, recolhidamente; fixo o
olhar, súplice e meigo, no dulcíssimo Jesus crucificado, a quem logo oferece a
Hóstia branca na velha patena onde ainda há restos de brilho; deitado no Cálix
um pouco de vinho e algumas gotas de água - faz a oblação. Purifica a ponta dos
polegares e dos indicadores; pede as orações dos irmãos em Cristo (Orate
fratres); reza as Secretas; seguem o Prefácio, o Sanctus, luminosos de alegria
congratulante, e o Canon; chega, enfim, à CONSAGRAÇÃO - alma erguida ao Céu a
rogar-lhe a bênção que prepara a maravilhosa Transubstanciação do pão e do
vinho. O presbítero ora pela Unidade e Força da Igreja; e pelas prosperidades
do Bispo daquela diocese, a quem ele, Gabriel, em particular, devia o resgate
da sua alma pecadora.
CONSAGRAÇÃO!
O Pe. Gabriel, em transporte de espírito, porém maximamente
sereno e forte na consciência absoluta do seu poder sacerdotal dado por Jesus,
e na de ser amparado, em sua pequenez, pela fineza augusta da Graça Celeste e
pela Misericórdia do Senhor, que lhe assistem, estende as mãos num gesto curvo,
sobre a Hóstia e sobre o Cálix, como a apossar-se, simbolicamente, daquela
divina vítima, e pronuncia baixinho - ciclo urdido de Sobrenatural - a Rogação,
para além das Esferas celestes, aos Infinitos Mistérios que enchem o Espaço
Infinito, que se realize, ali, naquele altar pobrinho, a Riqueza prodigiosa da
Maravilha das Maravilhas: a Presença de Jesus nas espécies pão e vinho, como
outrora, em terras de Israel, na última ceia do Senhor, ao instituir a
Sacratíssima Eucaristia. E porque o espírito do Pe. Gabriel todo ele é
agradecimento rendido à magnanimidade extremada dessa Graça àquele mísero
pecador, deslumbrado e fortalecido, duas grossas lágrimas de religiosa alegria
sobre-humana desceram lentas na sua face esmaltada de gratidão risonha.
Ajoelha com suma veneração. Depois, em nobre silêncio e
devota pausa a servirem perfeita piedade, levanta, acima da sua cabeça
tonsurada - símbolo da coroa de espinhos - primeiro, a Hóstia, em seguida, após
nova prece e consagração, o Cálix, ante os fiéis prostrados em seus profundos
recolhimentos, enquanto uma doente campainha rouqueja as três badaladas do
“Erguer a Deus”.
Memento.
Outras orações.
Reza o Pater que Jesus criou e foi o primeiro a rezar.
Parte em metades, a Hóstia, com dedos que um dia (como isso
vai longe!...) Jesus ungira, e prepara-se para a comunhão. Todo dentro de si
próprio, pensa, agora, que a sua “indignidade”, lustrada de Graça, se tornou
relativa “dignidade”, e igualmente, devido a essa Mercê, aquele seu Non sum
dignus, amparado no Sed tantum dic verbo…, se transformou em suficiente Sum
dignus.
E numa absoluta concentração do espírito, onde brilha o
timbre da letícia santificada, congratulando-se com o Mundo Divino, esta alma
de padre e de poeta, em colorida e sonorizada ascese, sobe da Terra ao Céu:
comunga Deus.
Já se ouve, num latim cheio de silabadas, o Confiteor, na
boca do rapazinho que ajuda à missa.
O Pe. Gabriel toma a píxide, de apagado oiro, com as sacrossantas
partículas, as primeiras que consagrou - quanta poética religiosidade! - e
distribui-as, desenhando com elas, no ar, firme e delicadamente, uma cruzinha e
pronunciando com nitidez:
- Corpus Domini
nostri Jesu Christi.
A mesa da comunhão está cheia de lés a lés. Esvaziada, nova
fileira de gente a substitui. E mais outra e mais outra. Não tem fim! Toda a
freguesia comungou: homens e mulheres, velhos e crianças.
Concluída a divina tarefa, fechado o Sacrário, reza as
últimas orações. Pouco depois, o Ite, e, em seguida, o Pe. Gabriel, mão em gume,
risca, religiosamente, alta e larga cruz sobre os fiéis, que, repetindo-a em si
mesmos, a recebem no coração; e gente velha - aferrada a obsoleta usança -
braço direito estendido, mão aberta, faz o gesto em arco, de puxar, de recolher
para si, essa bênção santa lançada no ar…
Finalmente, não lendo o In principio erat Verbum, de S. João
- consubstancia metafísica do Ser - mas, em S. Lucas, a parábola, doméstica,
social e sobrenatural, do “Filho pródigo”, termina.
E tudo nesta Missa, em que a alma do sacerdote transportado
esteve sempre presente, em que o espírito humano oficiou ao Espírito Divino,
foi - nas leituras, nas orações, nas atitudes, nos gestos, nas mesuras, até nas
pausas e, ainda, nos silêncios - substanciado de Unção, perfumado de Poesia.
Antero de Figueiredo, in “Non Sum Dignus”, Porto, Livraria
Tavares Martins, 4ª edição, 1948, páginas 358 a 365.
0 comentários:
Enviar um comentário