terça-feira, abril 01, 2014

A Primeira Missa

Na sacristia, tira a estola e a sobrepeliz, lava a ponta dos dedos numa baciazita, e começa a paramentar-se: põe nos ombros o amito puído; veste a alva de linho onde há pontéus toscos, e a renda, de dois palmos fartos, engomada, é rija como sola; cinge e ata o cordão que a segura num refego; empunha o manípulo no pulso esquerdo; cruza no peito a estola amarelecida pelos anos; enfia pela cabeça a casula de damasco branco, na última! Toma o Cálix coberto com véu branco e a quadrada bolsa dos corporais; e, abrindo difícil passagem por entre os muitos devotos que se entalam, encaminha-se para a capela-mor. Sobe os degraus do altar. Implora, contrito, a remissão dos seus pecados. Coloca o Cálix do lado do Evangelho, e, um momento recolhido, pensa comovidíssimo:
“Que gosto meus pais teriam de assistir a esta Missa-Nova, que pecados meus impediram ouvissem! Deus me perdoe e eles descansem em paz na Luz Perpétua!”
Desdobra sobre a Pedra de Ara o corporal alvíssimo; poisa nele o Cálix; ajeita o véu; faz uma sentida reverência à cruz; desce dois degraus no supedâneo, volta-se, benze-se, e logo diz, penetrado de comoção, com voz humílima:
- Introibo ad altare Dei.
Segue-se o Salmo: Judica me. Sobe. Reza. Beija a Pedra de Ara (o primeiro beijo sacerdotal da sua vida de presbítero) - quanto amor!
Lê a epístola.
O sacristãozinho muda o missal para a esquerda. Todos se erguem com ruído de botas cardadas. A meia voz, o Ministro do Senhor lê o seguimento e Evangelho de S. Lucas, referente à Anunciação. Terminada a leitura, o Dr. Gabriel Alvim, de costas para a Sacra de S. João Evangelista, no meio do silêncio intenso de ansiada expectativa, pronuncia, grave e afável:
- Cum electo, electus eris.
São palavras da Sagrada Escritura, que querem dizer: “com o puro serás puro”, ou de outra maneira: “entre gente boa, serás bom”. Portanto poderei dizer de mim para mim: serei puro, porque sei que estou com bons. Deus seja louvado!
Não sou eu que venho santificar-vos, sois vós que me santificareis. Desde já grato, felicito-me por encontrar nesta linda aldeia branca, voltada ao sol nascente, de ar limpo, entre montanhas, a mais afastada do centro desta diocese. A todos cumprimento, afirmando-lhes a minha profunda dedicação, e a todos agradeço, do fundo da alma, a maneira festiva e carinhosa como me receberam e quiseram e souberam, com muito lindas flores, adornar estes altares, e como que remoçar de alegria devota as velhas pedras desta antiquíssima igrejinha contemporânea dos nossos primeiros reis. Muito e muito obrigado.
Aquela gente, simples e sentimental, logo se sentiu invadida por uma onda de simpatia conquistadora, a qual galvanizou todos os corações. Respirava-se na atmosfera o hálito do afecto e cheirava a bem-querer.
(…)
E a missa continuou:
Pronunciado, com afirmação convicta, o Credo; saudado o povo, com cordial Dominus vobiscum; lido o Ofertório, recolhidamente; fixo o olhar, súplice e meigo, no dulcíssimo Jesus crucificado, a quem logo oferece a Hóstia branca na velha patena onde ainda há restos de brilho; deitado no Cálix um pouco de vinho e algumas gotas de água - faz a oblação. Purifica a ponta dos polegares e dos indicadores; pede as orações dos irmãos em Cristo (Orate fratres); reza as Secretas; seguem o Prefácio, o Sanctus, luminosos de alegria congratulante, e o Canon; chega, enfim, à CONSAGRAÇÃO - alma erguida ao Céu a rogar-lhe a bênção que prepara a maravilhosa Transubstanciação do pão e do vinho. O presbítero ora pela Unidade e Força da Igreja; e pelas prosperidades do Bispo daquela diocese, a quem ele, Gabriel, em particular, devia o resgate da sua alma pecadora.
CONSAGRAÇÃO!
O Pe. Gabriel, em transporte de espírito, porém maximamente sereno e forte na consciência absoluta do seu poder sacerdotal dado por Jesus, e na de ser amparado, em sua pequenez, pela fineza augusta da Graça Celeste e pela Misericórdia do Senhor, que lhe assistem, estende as mãos num gesto curvo, sobre a Hóstia e sobre o Cálix, como a apossar-se, simbolicamente, daquela divina vítima, e pronuncia baixinho - ciclo urdido de Sobrenatural - a Rogação, para além das Esferas celestes, aos Infinitos Mistérios que enchem o Espaço Infinito, que se realize, ali, naquele altar pobrinho, a Riqueza prodigiosa da Maravilha das Maravilhas: a Presença de Jesus nas espécies pão e vinho, como outrora, em terras de Israel, na última ceia do Senhor, ao instituir a Sacratíssima Eucaristia. E porque o espírito do Pe. Gabriel todo ele é agradecimento rendido à magnanimidade extremada dessa Graça àquele mísero pecador, deslumbrado e fortalecido, duas grossas lágrimas de religiosa alegria sobre-humana desceram lentas na sua face esmaltada de gratidão risonha.
Ajoelha com suma veneração. Depois, em nobre silêncio e devota pausa a servirem perfeita piedade, levanta, acima da sua cabeça tonsurada - símbolo da coroa de espinhos - primeiro, a Hóstia, em seguida, após nova prece e consagração, o Cálix, ante os fiéis prostrados em seus profundos recolhimentos, enquanto uma doente campainha rouqueja as três badaladas do “Erguer a Deus”.
Memento.
Outras orações.
Reza o Pater que Jesus criou e foi o primeiro a rezar.
Parte em metades, a Hóstia, com dedos que um dia (como isso vai longe!...) Jesus ungira, e prepara-se para a comunhão. Todo dentro de si próprio, pensa, agora, que a sua “indignidade”, lustrada de Graça, se tornou relativa “dignidade”, e igualmente, devido a essa Mercê, aquele seu Non sum dignus, amparado no Sed tantum dic verbo…, se transformou em suficiente Sum dignus.
E numa absoluta concentração do espírito, onde brilha o timbre da letícia santificada, congratulando-se com o Mundo Divino, esta alma de padre e de poeta, em colorida e sonorizada ascese, sobe da Terra ao Céu: comunga Deus.
Já se ouve, num latim cheio de silabadas, o Confiteor, na boca do rapazinho que ajuda à missa.
O Pe. Gabriel toma a píxide, de apagado oiro, com as sacrossantas partículas, as primeiras que consagrou - quanta poética religiosidade! - e distribui-as, desenhando com elas, no ar, firme e delicadamente, uma cruzinha e pronunciando com nitidez:
- Corpus Domini nostri Jesu Christi.
A mesa da comunhão está cheia de lés a lés. Esvaziada, nova fileira de gente a substitui. E mais outra e mais outra. Não tem fim! Toda a freguesia comungou: homens e mulheres, velhos e crianças.
Concluída a divina tarefa, fechado o Sacrário, reza as últimas orações. Pouco depois, o Ite, e, em seguida, o Pe. Gabriel, mão em gume, risca, religiosamente, alta e larga cruz sobre os fiéis, que, repetindo-a em si mesmos, a recebem no coração; e gente velha - aferrada a obsoleta usança - braço direito estendido, mão aberta, faz o gesto em arco, de puxar, de recolher para si, essa bênção santa lançada no ar…
Finalmente, não lendo o In principio erat Verbum, de S. João - consubstancia metafísica do Ser - mas, em S. Lucas, a parábola, doméstica, social e sobrenatural, do “Filho pródigo”, termina.
E tudo nesta Missa, em que a alma do sacerdote transportado esteve sempre presente, em que o espírito humano oficiou ao Espírito Divino, foi - nas leituras, nas orações, nas atitudes, nos gestos, nas mesuras, até nas pausas e, ainda, nos silêncios - substanciado de Unção, perfumado de Poesia.
Antero de Figueiredo, in “Non Sum Dignus”, Porto, Livraria Tavares Martins, 4ª edição, 1948, páginas 358 a 365.

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