Findavam Matinas. Os monges tinham-se erguido e
concentravam-se mergulhados na obscuridade dos seus capuzes.
Um curto silêncio de prosternação, e Laudes seguiu-se
imediatamente.
Passava já da uma hora da madrugada.
Era Laudes um dos mais belos momentos da oração do claustro.
Louvar, bendizer, exaltar o Senhor, não se resumia nisto a
função monástica? O homem desaparecia, aniquilava-se, anulava-se e eram as
coisas da terra, eram os seres do Universo que conclamavam nos lábios do monge
os hinos e graças à omnipotência divina. O claustro inteiro erguia-se,
liberava-se no voo branco das almas e das cogulas e tecia em torno da divindade
uma luminosa auréola de bênção e valores.
No cântico de Daniel e no salmo Laudate Dominum, o coro
erguido vibrou na mesma impulsão para Deus. Era o clamor da voz universal
vocalizado pelo claustro. Os monges sentiam-se intérpretes da Criação e pela
boca deles a natureza rendia o seu preito a Deus. “Obras do Senhor, bendizei o
Senhor; louvai-o e exaltai-o nos séculos sem fim!” E num apelo comovente as
vozes exortaram os anjos do Senhor a louvarem o Senhor; exortaram o sol,
exortaram a lua; exortaram o céu, as estrelas; o vento e a chuva, o fogo e o
calor; a humidade e o frio, o granizo e a geada; os gelos e a neve; a noite e o
dia: Benedicite lux e tenebrae, Domino: Benedicite fulgura et nubes, Domino. E pela
voz dos monges, a luz e a treva, os relâmpagos e as nuvens louvavam o Senhor,
exaltavam o Senhor. Benedicite montes et colles, Domino: Benedicite universia
germinantia in terra, Domino. Os montes e outeiros bendiziam o Senhor, e todas
as germinações da terra louvavam o Senhor. E as fontes e os rios, os mares, os
peixes, e tudo o que se vive e se mexe nas águas; as aves do céu e os
quadrúpedes da terra; o filho do homem e os servidores de Deus; os espíritos
eleitos e as almas dos justos; os santos e todos os dóceis de coração; os reis
da terra e todos os povos; os príncipes e todos os juízes da terra, louvavam o
Senhor, bendiziam o Senhor…
Caíram as vozes, abateram-se as formas. As frontes
ocultaram-se nos capuzes de lã e esmoreceram as luzes nos capuzes de ferro.
Tudo parecia extinguir-se, suprimir-se. Então, no silêncio da treva e da hora,
um sino lançou gravemente, em largas síncopes de recolhimento, a tríplice bênção
lenta da sua voz de bronze por cima das cabeças de rojo no pó. Era esse Angelus
especial da noite cartusiana esvoaçando, como uma grande ave branca, sobre os
montes e vales adormecidos…
Ergueram-se os monges. Deslocou-se um vulto, aproximou-se da
lâmpada mortiça do altar e arrancou-lhe um pouco da sua chama. Depois percorreu
as duas alas do coro, deixando na sua passagem uma ténue poeira de oiro.
Cintilou de cada lado da igreja uma fieira de lumes. Eram as
lanternas que se acendiam para a travessia do regresso.
As formas brancas despegaram-se então dos cadeirais, saudaram
o altar e lentamente, uns atrás dos outros, sumiram-se os vultos na escuridão.
Manuel Ribeiro, in “O Deserto”, Lisboa, Guimarães &
Cia., 4ª edição, s/d - páginas 68 a 70.
1 comentários:
Bom deserto quaresmal, caro amigo.
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