domingo, março 23, 2014

Da Costa Rica à Costa Lusitana

O comunicado recentemente publicado pela “Una Voce Costa Rica” é bem exemplificativo da forma como os católicos tradicionais devotos do rito latino-gregoriano são amiudadas vezes maltratados pelas próprias autoridades eclesiásticas: da sua leitura, impressiona constatar como estas autoridades se podem comportar com tanta má vontade, com tanta má-fé negocial, enfim, com tanta falta de caridade. E, infelizmente, tais comportamentos não são um exclusivo da Costa Rica - muito longe disso! -, multiplicando-se cada vez mais pelo mundo inteiro.
Parece-me que a lição a retirar destes factos é a seguinte: com excepção das dioceses em número crescente, mas ainda muito minoritário no cômputo global da Igreja, em que os bispos locais se mostram espontaneamente abertos à Missa Tradicional de rito latino-gregoriano (por exemplo, Fréjus, em França; Albenga-Imperia, em Itália; Vaduz, no Liechtenstein; e umas quantas dioceses mais, situadas sobretudo nos Estados Unidos), não vale a pena negociar com as actuais autoridades eclesiásticas, constituindo uma pura perda de tempo as tentativas feitas nesse sentido.
Na verdade, entre as partes envolvidas - os católicos tradicionais peticionantes, por um lado; as autoridades eclesiásticas, por outro - existe um abismo absolutamente intransponível, o qual consiste em as mesmas partes, em termos prático-concretos (e teórico-formais…), professarem credos religiosos distintos, ainda que ambas se apodem de católicas: uma encara o Catolicismo à luz da Tradição, daquilo que a Igreja sempre ensinou e praticou, e que tem na Missa Tradicional de rito latino-gregoriano a sua expressão prática máxima; outra, toma a ruptura pós-conciliar antitradicional iniciada nos anos 60 como o ponto de referência do seu “Catolicismo”, abominando portanto um rito que é a negação concreta daquilo tudo em que acredita… Com ironia ou mesmo sem ela, em face disto, poder-se-ia até afirmar que parte da Igreja Católica subsiste na Igreja Católica, mas também que as fronteiras visíveis da Igreja Católica e da Igreja Conciliar não são coincidentes…
De resto, no seu íntimo, estas autoridades eclesiásticas encaram os católicos tradicionais, na melhor das hipóteses, como um grupo de românticos motivados por modismos de ordem estética; na pior, como um bando de mentecaptos fascistas e saudosistas. Ora, de autoridades deste calibre, os tradicionalistas só podem esperar enxovalhos e humilhações de todo o tipo, pedras, escorpiões e serpentes como presentes. Pedir-lhes que autorizem a Missa Tradicional é, no fundo, atitude idêntica à do legítimo proprietário de uma casa que desta foi expulso por um bando de malfeitores e a seguir lhes vai implorar se pode continuar a residir por favor na cave, no sótão ou numa arrecadação da mesma casa, consentindo assim que esses malfeitores o esbulhem daquilo que lhe pertence por direito próprio.  
Que fazer, pois, nestes casos, como os da Costa Rica, que constituem a situação da grande maioria das dioceses do mundo inteiro (nestas incluindo-se desgraçadamente a totalidade das dioceses portuguesas), dioceses em estado de necessidade notório e evidente?
Reconhecendo o óbvio, o próprio comunicado da “Una Voce Costa Rica” avança com a única resposta possível: nestes casos, aos católicos tradicionais não sobra outra alternativa que não seja a de agarrarem-se àquilo que têm, a de agruparem-se à volta da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X (FSSPX), obra de carácter verdadeiramente providencial que constitui uma autêntica “Arca de Noé” da Tradição Católica e um seguríssimo porto de abrigo para todos os crentes na tormenta que insiste em fustigar a Igreja pós-conciliar.
Também em Portugal, parece-me que deve ser este o caminho a seguir, se se pretende que o sempre incipiente, desorganizado e pouco militante tradicionalismo católico nacional crie raízes e se fortifique: reforçar os apostolados já existentes e, na medida em que os fiéis se organizem nesse sentido, tentar criar novos apostolados da FSSPX em zonas do nosso país onde eles ainda não existam.
Para terminar, quanto ao mais, insisto que não vale a pena perder tempo com autoridades eclesiásticas totalmente imbuídas pelas heterodoxias modernista e progressista, e das quais os católicos tradicionais só têm a receber, e nem sempre de forma velada, ofensas e insultos.

4 comentários:

Afonso Miguel disse...

Caro amigo,

Em Agosto do ano passado publiquei um post no Semper Idem que creio estar muito em sintonia com o que aqui escreves. Urge uma acção mais visível da FSSPX para que não continuemos nesta situação lastimável. Aliás, estamos em tão grande estado de necessidade que, mesmo com todas as reservas que a fraternidade possa levantar, não poderiam os fiéis deixar de considerar viável atender a uma Missa pública regular se esta existisse em Lisboa, por exemplo, numa igreja aberta a todos. O que muitos desses fiéis fazem, como eu, é encontrar um sacerdote na sua àrea geográfica que obedeça às rubricas do Rito Paulino, nutra amor pela liturgia, célebre no espírito da reforma da reforma e mantenha a boa doutrina na catequese do púlpito. O que não é tarefa fácil, como é óbvio. Houvesse uma outra presença da FSSPX na capital e a situação mudava de figura - a actual presença deixa muito a desejar, por motivos que não merecem ser aqui tidos em conta.

Bem sei que praticamente ninguém se mexe mas que todos falam muito. Também sou um desses casos, estou ciente, em que a resignação se apoderou das mais elevadas intenções. O episcopado deixou as regras bem traçadas quanto à possibilidade do Summorum Pontificum ter o seu espaço em Portugal e isso leva-nos, desgraçadamente, ao desânimo total. Por esse mesmo motivo, acabei por me desinteressar pela ideia da Una Voce Portugal, por me parecer condenada à nascença. Louvo o mérito de quem a fundou e mantém, e de quem acredita ainda na possibilidade de virmos a ter uma Missa Tridentina autorizada, mas a realidade arruina qualquer pretensão nesse sentido.

Dito isto, repito que estou muito em sintonia com o que aqui escreves. A não ser acontecer termos um bispo decente de um momento para o outro, manter-se-á o estado de necessidade que justifica aquela acção urgente da fraternidade. Rezemos para que aconteça, a bem de todos e para maior glória de Deus.

Miles disse...

Caro amigo, confesso que, ao escrever o que escrevi, não pude deixar de me recordar daquilo que disseste no artigo que invocas.

Quanto ao mais que referes, concordo genericamente contigo e compreendo a atitude de quem, como contas, procura na sua área geográfica um sacerdote que obedeça às rubricas do rito paulino, nutra amor pela liturgia, celebre no espírito da reforma da reforma e mantenha a boa doutrina na catequese do púlpito (o que, diga-se de passagem, é tarefa absolutamente hercúlea em Portugal, numa Igreja que já era francisquista muito antes de Francisco).

Há uns cinco ou seis anos, eu ainda pensava da mesma maneira que tu; porém, actualmente, cheguei a uma fase em que coloco a mim próprio apenas a seguinte alternativa: ou a Missa Tradicional de rito latino-gregoriano ou nada! Em consciência, sabendo tudo aquilo que hoje sei sobre o rito paulino, tudo o que estudei sobre a génese e finalidade do mesmo rito (as últimas ilusões que tinha, perdi-as em definitivo com a leitura do livro “Work of Human Hands - A Theological Critique of the Mass of Paul VI”, do Padre Anthony Cekada - http://sggresources.org/products/work-of-human-hands-by-rev-anthony-cekada), só posso dizer que me é uma violência impossível de suportar assistir a uma Missa de rito paulino, ainda por cima nos moldes práticos em que a mesma é usualmente celebrada em Portugal. Em consciência, insisto, não posso, não quero, não consigo pactuar com esta completa violência moral!

Enfim, relativamente à reforma da reforma litúrgica, uma das imagens de marca do pontificado do nosso querido Papa Bento XVI, reforma que na altura acarinhei e que em Portugal foi um falhanço quase tão estrepitoso como a aplicação do “Summorum Pontifucum”, julgo hoje em dia que tentar procurar a quadratura do círculo, ou seja, “tridentinizar” o rito paulino, é uma pura perda de tempo. “Tridentinização” por “tridentinização”, use-se sem ambiguidades o que nunca deveria ter sido abandonado - a Missa Tradicional de rito latino-gregoriano, na versão constante do Missal de 1962. Condescendo tão-só que, por razões de ordem prática de adaptação dos fiéis dela desconhecedores ou desabituados, fosse possível, em algumas celebrações previamente bem determinadas, um uso um pouco mais vasto de vernáculo, o qual jamais seria extensível à totalidade “Canon” (que, de resto, é rezado na sua quase totalidade em silêncio).

Afonso Miguel disse...

Caro amigo,

Felizmente encontrei um sacerdote com as referidas características. Tridentiniza o rito, como lhe chamas, usa manípulo, por vezes celebra ad orientem... É claro que nada disto se compara à liturgia na agora denominada Forma Extraordinária. Mas para quem, como eu, pretende encontrar uma comunidade paroquial minimamente sã onde possamos confiar parte da educação religiosa dos filhos, onde os possamos introduzir numa piedade e reverência liturgical perdidas, onde não nos preocuparemos com heresias contadas do púlpito, para pessoas assim não há alternativa. É uma questão de sobrevivência, até que o bispo se lembre de o mandar para a Antártida. Porque se considerarmos a FSSPX em Lisboa, não encontraremos nela essa alternativa, por motivos que, como disse no comentário anterior, não são para ser tratados aqui. Para mais, o tradicionalismo português não é o tradicionalismo francês, nem alemão, e essa tem sido uma das pedras no sapato.

Do livro que referes, confesso que tenho tido muita resistência em lê-lo. Não considera o padre Cakada que a Missa em Rito Paulino é inválida? Por mais tendência herética que possamos considerar ter, a validade parece-me de tal maneira inquestionável que o sedevacantismo fundamentalista de Cekada me afasta dessa leitura, embora a tenha ponderado. Não que o livro não possa ser excelente - e certamente acabarei por ler - mas receio enredar-me num tipo de argumento do qual não quero fazer parte.

No mais, mantenho e reitero, na linha do que aí escreves. A Fraternidade devia actuar de forma diferente em Portugal. Penso que é a única hipótese de termos uma Missa Tridentina em Lisboa numa capela aberta a todos e numa presença mais visível. Caso contrário, continuaremos a sobreviver destes sacerdotes, poucos, que, ainda relativamente novos e agrilhoados pelo episcopado, se inserem neste movimento de reforma da reforma e na manutenção do dogma que ensinam.

Forte abraço.

Miles disse...

Caro amigo, como já disse antes, sobre este assunto, compreendo perfeitamente as tuas preocupações e entendo a tua posição. Deste modo, felicito-te por haveres encontrado um sacerdote com as qualidades que contas - sacerdotes assim, na actualidade da Igreja portuguesa, mais do que um bem raro, são um autêntico tesouro (por motivos óbvios, não te pergunto publicamente quem ele seja e qual a paróquia que tem a seu cargo).

Quanto ao mais que possa afirmar sobre este mesmo assunto (a minha questão de consciência com o “Novus Ordo”), direi tão-só que as questões de consciência, ainda que suscitadas com recta intenção, são sempre pessoais e intransmissíveis, e são sempre para ser debatidas no lugar próprio, isto é, no âmbito privado da direcção espiritual e não nas caixas de comentários públicos de um blogue. Penitencio-me, portanto, de ter trazido este assunto para aqui.

Em relação à tua última intervenção, presto ainda mais dois esclarecimentos.

Primeiro, em relação ao livro do Padre Cekada: trata-se de um excelente estudo, no qual é analisado em profundidade o Missal de Paulo VI. O livro mereceu os maiores elogios daqueles que são certamente os dois blogues tradicionalistas mais importantes do mundo - o “New Liturgical Movement”, totalmente alinhado com as posições da “Ecclesia Dei”, e o “Rorate- Caeli”, mais próximo da FSSPX -, bem como elogios de um teólogo como Alcuin Reid. Numa obra com quatrocentas e cinquenta páginas, o Padre Cekada aflora a questão da (in)validade do rito paulino, em somente duas ou três dessas páginas, não sendo esse de longe o seu objectivo neste estudo, que, ao invés, é deixar perfeitamente demonstrada a diferença doutrinal abissal que existe entre o rito tradicional e o rito paulino. Porém, tranquilizo-te: eu continuo a aceitar a validade do “novus ordo”, na condição de que o sacerdote que o celebre tenha a intenção de fazer o que a Igreja sempre fez, o que ambos sabemos muitos vezes não suceder, pelo menos, em Portugal. Dito isto, não se segue que o rito, por ser válido, se torne necessariamente bom. Não o é e o Padre Cekada explica perfeitamente porquê.

Segundo, no que respeita à FSSPX, concordo em absoluto contigo e, nomeadamente, quando referes que são muitos os que falam, mas muito poucos os que fazem. E enquanto assim for, só nos resta dar graças a Deus e a Nossa Senhora por aquilo que, apesar de tudo, ainda vanmos tendo da FSSPX em Portugal. É que em muitos países ditos de maioria católica por esse mudo fora, a FSSPX não tem mesmo qualquer presença…

Um grande abraço em Cristo e Maria.