Mas vejo que ainda há quem repugne ou, quando menos, duvide e pergunte como pode ser e se pode dizer, com verdade, que nós os cristãos e católicos, não cremos a Deus? Para nós não há outra fé, nem outra autoridade, nem outro oráculo infalível, senão o da palavra divina. Logo, como não cremos a Deus? O mesmo Deus respondeu já a esta dúvida, e nos deu uma regra certa, por onde conheçamos sem engano, se o cremos a ele, ou não. Cuidamos que cremos a Deus, e enganamo-nos. Mas qual é a regra? Qui crediti Deo, attendit mandatis: Sabeis quem crê a Deus? - diz o Espírito Santo: Quem faz o que Deus lhe manda. Se fazeis o que Deus manda, credes a Deus; se não fazeis o que ele manda, não o credes a ele: credes-vos a vós, credes ao vosso apetite, credes ao diabo, como creu Eva. Por isso dizia Davi: Quia mandatis tuis credidi: Eu, Senhor, cri aos vossos mandamentos. Isto é só o que é crer a Deus. A nossa fé pára no Credo, não passa aos Mandamentos. Se Deus nos diz que é um, creio, se nos diz que são três pessoas, creio; se nos diz que é criador do céu e da terra, creio; se nos diz que se fez homem, que nos remiu, e que há-de vir a julgar vivos e mortos, creio. Mas se diz que não jureis, que não mateis, que não adultereis, que não furteis, não cremos. Esta é a nossa fé, esta a vossa cristandade. Somos católicos do Credo, e hereges dos Mandamentos. Vede se se deve contentar Cristo com tal invenção de crer, e se tenho eu razão de pregar que cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi.
E para que esta verdade, que só está provada em comum, se veja com os olhos e se apalpe com as mãos, desçamos a exemplos particulares, e, ponhamo-los, para maior clareza nas matérias mais familiares e usuais, ainda da conveniência do interesse, do gosto.
Que homem há, senhores, que não busque o descanso? Este é o fim que se busca e que se pretende por todos os trabalhos da vida. O soldado, pelos perigos da guerra, busca o descanso da paz. O mareante, por meio das ondas e das tempestades, busca o descanso do porto. O lavrador, pelo suor do arado, o estudante, queimando as pestanas, o mercador, arriscando a fazenda, todos, como diversos rios ao mar, correm a buscar o descanso, que é o centro do desejo e do cuidado. E houve algum homem tão mimoso da fortuna neste mundo, que em alguma, ou em todas as coisas dele, achasse o descanso que buscava? Nenhum. Saiu a pomba da Arca, e diz o texto sagrado que já ia, já tornava, já tomava para uma parte, já para outra, e que não achava onde descansar: Cum non invenisset ubi requiescere pes ejus. Primeiro lhe cansaram as asas, do que achasse onde descansar os pés. E por que não achava a pomba onde descansar? Porque buscava o descanso onde o não havia. As cidades, os campos, os vales, os montes, tudo era mar. Este é o mundo em que vivemos. Antes e depois de Noé, sempre foi dilúvio. Uns para uma parte, outros para outra, todos cansando-se em buscar o descanso, e todos cansados de o não achar. A razão deu S. Agostinho no Livro Quarto dos seus desenganos, a que ele chamou Confissões: Non est requies ubi quaeritis eam: quaerite quod quaeritis, sed ibi non est ubi quaeritis. A razão por que não achamos o descanso é porque o buscamos onde não está. Não vos digo, diz Agostinho, que o não busqueis: buscai-o; só vos digo que não está aí onde o buscais. Pois se é bem que busquemos o descanso, e ele não está onde o buscamos, onde o havemos de buscar? Onde Cristo disse que o buscássemos, porque só aí está, e só aí o acharemos: Venite ad me omnes qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos: Tollite jugum meum super vos, et invenietis requiem animabus vestris: Todos os que andais cansados - que sois todos - vinde a mim, diz Cristo, e eu vos aliviarei; tomai sobre vós o jugo de minha lei, e achareis o descanso. Credes que são estas palavras de Cristo? Sim. Agora, respondei-me: é certo que todos desejais o descanso; é certo que todos o buscais com grande trabalho, por diversos caminhos, e que o não achais. Pois por que o não buscais na observância da lei de Cristo? Cristo diz que na sua lei está o alívio de todo o trabalho: Venite ad me omnes qui laboratis, et ego reficiam vos. Cristo diz que na sua lei, e só na sua lei, se acha o descanso: Et invenietis requiem animabus vestris. Logo, se não buscais o descanso na lei de Cristo, é certo que não credes a Cristo, porque se vós buscais o descanso onde o não há, com trabalho, claro está que antes o haveis de buscar onde o há sem trabalho. Mas a verdade é - e vós o sabeis muito bem - que a razão por que não buscais o descanso na lei de Cristo é porque a não tendes por descansada, senão por muito trabalhosa. Vós tende-la por trabalhosa, dizendo Cristo que só ela vos pode aliviar do trabalho? Vós tende-la por cansada, dizendo Cristo que só nela está o descanso? Logo, credes o que vós imaginais, e não o que Cristo diz; credes em Cristo, mas não credes a Cristo: Non creditis mihi.
(…)
Infinita matéria era esta, se a houvéramos de prosseguir com ponderações tão largas. Mas não é bem que, sendo tão importante, não convençamos ainda mais a nossa pouca fé. Seja em termos brevíssimos. Que mais diz Cristo? Diz Cristo - e esta foi a primeira coisa que disse - que são bem-aventurados os pobres, e que deles é o reino do céu. Todos queremos ser bem-aventurados, todos queremos ir ao céu, e, sendo tão fácil o ser pobre, e tão dificultoso o ser rico, ninguém quer ser pobre: porquê? Porque não cremos a Cristo. Diz Cristo que, se nos derem uma bofetada na face direita, ofereçamos a esquerda, e, sendo mais nobre a paciência que a vingança, nós temos a vingança por honra, e a paciência por afronta: porquê? Porque não cremos a Cristo. Diz Cristo que quem se humilha será exaltado, e quem se exalta será humilhado; e nós cuidamos que sendo humildes nos abatemos, e sendo altivos e soberbos nos levantamos: porquê? Porque não cremos a Cristo.
Diz Cristo que deixemos aos mortos sepultar os seus mortos; e nós desenterramos os mortos, para sepultar os vivos. Diz Cristo que amemos e façamos bem a nossos inimigos; e quem há que ame verdadeiramente e guarde inteira fé aos amigos? Diz Cristo que, se amarmos os inimigos, seremos filhos de Deus; e nós dizemos: não serei eu filho de meu pai, se mo não pagar o meu inimigo. Diz Cristo que se por demanda nos quiserem tirar a capa, larguemos também a roupeta; e nós não fazemos já as demandas para defender o vestido próprio, senão para despir o alheio. Diz Cristo que vigiemos e estejamos sempre aparelhados, porque não sabemos o dia nem a hora em que virá a morte; e cada um vive e dorme tão sem cuidado, como se fôramos imortais. Diz Cristo que quem ouve os prelados, o ouve a ele, e quem os despreza, o despreza; e nós, ainda que o prelado seja o supremo, desprezamo-nos de o ouvir, e ouvimos e ajudamos os que o desprezam. Diz Cristo que é mais fácil entrar um calabre pelo fundo de uma agulha, que entrar um avarento no reino do céu; e nós, em vez de desfiar o calabre, todo o nosso cuidado é como o faremos mais grosso. Diz Cristo que, se dermos esmola, não saiba a mão esquerda o que faz a direita; e nós queremos se apregoe com trombetas que damos com ambas as mãos o que recebemos com ambas. Diz Cristo que, se o olho direito nos escandaliza, o arranquemos, e que se a mão, ou o pé direito nos for também de escândalo, o cortemos e lancemos fora; e quem há que queira cortar ou apartar de si, nem a coisa que ama como os olhos, nem aquela de que se serve, como dos pés e mãos? Finalmente diz Cristo que ele é o caminho, a verdade e a vida; e nós vivemos tais vidas e andamos por tais caminhos, como se tudo isto fora mentira: porquê? Porque não cremos a Cristo. Fique pois por conclusão certa e infalível, ainda que seja com grande confusão nossa e afronta do nome cristão, que todos, ou quase todos, cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi.
Padre António Vieira, in “Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”, pregado na Sé Catedral de Lisboa, no ano de 1651
E para que esta verdade, que só está provada em comum, se veja com os olhos e se apalpe com as mãos, desçamos a exemplos particulares, e, ponhamo-los, para maior clareza nas matérias mais familiares e usuais, ainda da conveniência do interesse, do gosto.
Que homem há, senhores, que não busque o descanso? Este é o fim que se busca e que se pretende por todos os trabalhos da vida. O soldado, pelos perigos da guerra, busca o descanso da paz. O mareante, por meio das ondas e das tempestades, busca o descanso do porto. O lavrador, pelo suor do arado, o estudante, queimando as pestanas, o mercador, arriscando a fazenda, todos, como diversos rios ao mar, correm a buscar o descanso, que é o centro do desejo e do cuidado. E houve algum homem tão mimoso da fortuna neste mundo, que em alguma, ou em todas as coisas dele, achasse o descanso que buscava? Nenhum. Saiu a pomba da Arca, e diz o texto sagrado que já ia, já tornava, já tomava para uma parte, já para outra, e que não achava onde descansar: Cum non invenisset ubi requiescere pes ejus. Primeiro lhe cansaram as asas, do que achasse onde descansar os pés. E por que não achava a pomba onde descansar? Porque buscava o descanso onde o não havia. As cidades, os campos, os vales, os montes, tudo era mar. Este é o mundo em que vivemos. Antes e depois de Noé, sempre foi dilúvio. Uns para uma parte, outros para outra, todos cansando-se em buscar o descanso, e todos cansados de o não achar. A razão deu S. Agostinho no Livro Quarto dos seus desenganos, a que ele chamou Confissões: Non est requies ubi quaeritis eam: quaerite quod quaeritis, sed ibi non est ubi quaeritis. A razão por que não achamos o descanso é porque o buscamos onde não está. Não vos digo, diz Agostinho, que o não busqueis: buscai-o; só vos digo que não está aí onde o buscais. Pois se é bem que busquemos o descanso, e ele não está onde o buscamos, onde o havemos de buscar? Onde Cristo disse que o buscássemos, porque só aí está, e só aí o acharemos: Venite ad me omnes qui laboratis et onerati estis, et ego reficiam vos: Tollite jugum meum super vos, et invenietis requiem animabus vestris: Todos os que andais cansados - que sois todos - vinde a mim, diz Cristo, e eu vos aliviarei; tomai sobre vós o jugo de minha lei, e achareis o descanso. Credes que são estas palavras de Cristo? Sim. Agora, respondei-me: é certo que todos desejais o descanso; é certo que todos o buscais com grande trabalho, por diversos caminhos, e que o não achais. Pois por que o não buscais na observância da lei de Cristo? Cristo diz que na sua lei está o alívio de todo o trabalho: Venite ad me omnes qui laboratis, et ego reficiam vos. Cristo diz que na sua lei, e só na sua lei, se acha o descanso: Et invenietis requiem animabus vestris. Logo, se não buscais o descanso na lei de Cristo, é certo que não credes a Cristo, porque se vós buscais o descanso onde o não há, com trabalho, claro está que antes o haveis de buscar onde o há sem trabalho. Mas a verdade é - e vós o sabeis muito bem - que a razão por que não buscais o descanso na lei de Cristo é porque a não tendes por descansada, senão por muito trabalhosa. Vós tende-la por trabalhosa, dizendo Cristo que só ela vos pode aliviar do trabalho? Vós tende-la por cansada, dizendo Cristo que só nela está o descanso? Logo, credes o que vós imaginais, e não o que Cristo diz; credes em Cristo, mas não credes a Cristo: Non creditis mihi.
(…)
Infinita matéria era esta, se a houvéramos de prosseguir com ponderações tão largas. Mas não é bem que, sendo tão importante, não convençamos ainda mais a nossa pouca fé. Seja em termos brevíssimos. Que mais diz Cristo? Diz Cristo - e esta foi a primeira coisa que disse - que são bem-aventurados os pobres, e que deles é o reino do céu. Todos queremos ser bem-aventurados, todos queremos ir ao céu, e, sendo tão fácil o ser pobre, e tão dificultoso o ser rico, ninguém quer ser pobre: porquê? Porque não cremos a Cristo. Diz Cristo que, se nos derem uma bofetada na face direita, ofereçamos a esquerda, e, sendo mais nobre a paciência que a vingança, nós temos a vingança por honra, e a paciência por afronta: porquê? Porque não cremos a Cristo. Diz Cristo que quem se humilha será exaltado, e quem se exalta será humilhado; e nós cuidamos que sendo humildes nos abatemos, e sendo altivos e soberbos nos levantamos: porquê? Porque não cremos a Cristo.
Diz Cristo que deixemos aos mortos sepultar os seus mortos; e nós desenterramos os mortos, para sepultar os vivos. Diz Cristo que amemos e façamos bem a nossos inimigos; e quem há que ame verdadeiramente e guarde inteira fé aos amigos? Diz Cristo que, se amarmos os inimigos, seremos filhos de Deus; e nós dizemos: não serei eu filho de meu pai, se mo não pagar o meu inimigo. Diz Cristo que se por demanda nos quiserem tirar a capa, larguemos também a roupeta; e nós não fazemos já as demandas para defender o vestido próprio, senão para despir o alheio. Diz Cristo que vigiemos e estejamos sempre aparelhados, porque não sabemos o dia nem a hora em que virá a morte; e cada um vive e dorme tão sem cuidado, como se fôramos imortais. Diz Cristo que quem ouve os prelados, o ouve a ele, e quem os despreza, o despreza; e nós, ainda que o prelado seja o supremo, desprezamo-nos de o ouvir, e ouvimos e ajudamos os que o desprezam. Diz Cristo que é mais fácil entrar um calabre pelo fundo de uma agulha, que entrar um avarento no reino do céu; e nós, em vez de desfiar o calabre, todo o nosso cuidado é como o faremos mais grosso. Diz Cristo que, se dermos esmola, não saiba a mão esquerda o que faz a direita; e nós queremos se apregoe com trombetas que damos com ambas as mãos o que recebemos com ambas. Diz Cristo que, se o olho direito nos escandaliza, o arranquemos, e que se a mão, ou o pé direito nos for também de escândalo, o cortemos e lancemos fora; e quem há que queira cortar ou apartar de si, nem a coisa que ama como os olhos, nem aquela de que se serve, como dos pés e mãos? Finalmente diz Cristo que ele é o caminho, a verdade e a vida; e nós vivemos tais vidas e andamos por tais caminhos, como se tudo isto fora mentira: porquê? Porque não cremos a Cristo. Fique pois por conclusão certa e infalível, ainda que seja com grande confusão nossa e afronta do nome cristão, que todos, ou quase todos, cremos em Cristo, mas não cremos a Cristo: Non creditis mihi.
Padre António Vieira, in “Sermão da Quinta Dominga da Quaresma”, pregado na Sé Catedral de Lisboa, no ano de 1651