sexta-feira, abril 06, 2012

In finem dilexit


Se Cristo não se conhecera, não fora muito que nos amasse; mas amar-nos, conhecendo-se, foi tal excesso, que parece que o mesmo amar-nos, foi desconhecer-se. Disse uma vez a Esposa dos Cantares a seu Esposo, que o amava muito: Quem diligit anima mea. E ele que lhe responderia? Si ignoras te ó pulcherrima inter mulieres: Formosíssima de todas as mulheres, desconhecei-vos? Notável resposta! De maneira, que quando a Esposa afirma ao Esposo que o ama, o Esposo pergunta à Esposa se se desconhece: Si ignoras te? Esposo discreto e amado, que modo de responder é esse; e que consequência tem esta vossa resposta? Quando a Esposa vos assegura o seu amor, vós duvidais-lhe o seu conhecimento: e quando afirma que vos ama, perguntais-lhe se se desconhece: Si ignoras te? Sim. Porque conforme a alta estimação que o Esposo fazia dos merecimentos da Esposa, afirmar ela que o amava tanto, era tão grande razão para duvidar se se não conhecia. Como se dissera o Esposo: Vós dizeis que me amais: Quem diligit anima mea? Pois eu digo que vos não conheceis: Si ignoras te ó pulcherrima. Por que se vos conheceis a vós, como é possível que me ameis a mim? Foi necessário que a vós vos faltasse o conhecimento, para que a mim sobejasse a ventura. O amor de minha indignidade, vem a parecer ignorância de vossa grandeza: Si ignoras te; por que se não deixáreis de vos conhecer, como vos abateríeis a me amar?

Isto que antigamente disse Salomão à princesa do Egipto, podemos nós dizer com mais razão ao verdadeiro Salomão, Cristo, à vista dos extremos do seu amor: Si ignoras te. É isto amor, Deus meu, ou ignorância? Amai-nos, ou desconhecei-vos? Verdadeiramente parece que vos esqueceis de quem sois, e que vos tirais da memória, para nos meter na vontade. Oh que alta e profundamente considerou hoje S. Pedro estes dois extremos, quando com assombro do céu, vos viu diante de si com os joelhos em terra. Tu mihi? Vós a mim? Vós Pedro? Parece, Senhor, que nem vos conheceis a vós, nem me conheceis a mim. Mas o certo é que a vós vos conheceis, e a mim amais. E é tão grande vossa sabedoria em conhecer estas desproporções, como vosso amor em ajuntar estas distâncias. Mas em amor infinito bem podem caber distâncias infinitas. Assim o provam as mãos de Deus juntas com os pés dos homens: Sciens quia omnia dedit ei Pater in manus: Eis aí as mãos de Deus: Caepit lavare pedes discipulorum. Eis aí os pés dos homens.

Apareceu Deus na sarça a Moisés, e mandou-lhe descalçar os sapatos. Solve calceamenta de pedibus tuis. Quando eu lia este passo, admirava-me certo muito, de que a majestade e a grandeza de Deus entendesse com os pés de Moisés. Mas quem puser os olhos na sarça, deixará logo de se admirar. A sarça em que Deus apareceu, estava ardendo toda em chamas vivas, e um Deus abrasado em fogo, que muito que se abalance aos pés dos homens? Falando a nosso modo, nunca Deus se conheceu melhor, que quando estava na sarça, porque ali definiu sua essência: Ego sum qui sum. E definindo-se Deus, o fogo que não se apagasse? Que conhecendo-se Deus essencialmente, as labaredas, em que ardia, não se diminuíssem? Grande amor! Definir-se e esfriar-se, fora tibieza; definir-se e arder, isso é amar. Não fora Deus quem é, se não amara como amou. O definir-se foi declarar a sua essência: o arder foi provar a definição. O mesmo aconteceu a Cristo hoje: Sciens quia a Deo exivit, ponit vestimenta sua. Sabendo que era filho de Deus, começou a despir as roupas. Quem sabia que era Filho de Deus, conhecia-se: quem lançava de si as roupas, abrasava-se: e conhecer-se e abrasar-se, isto é amor: In finem dilexit.

Padre António Vieira, in “Sermão do Mandato”, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1645

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