domingo, janeiro 21, 2007

Aborto, imagens e palavras - 10


Quando fiz o balanço do pontificado do Papa João Paulo II, escrevi neste mesmo espaço o seguinte: "(…) se por vezes demais João Paulo II pareceu comprometer a tradição, no absolutamente imprescindível salvaguardou com denodo notável a fé e moral católicas, erguendo-se em principal adversário da guerra cultural que o esquerdismo niilista declarou contra os valores basilares do Ocidente. Elogiemos, pois, o combate sem concessões que dirigiu contra o divórcio, o aborto, a eutanásia, a homossexualidade e as uniões legais entre pessoas do mesmo sexo, em defesa da família e da vida, em suma, das leis divina e moral, e da ordem natural superior a elas adstrita. Em tal combate, teve João Paulo II o ponto mais saliente do seu pontificado!"

Como paradigma desse combate, e com plena oportunidade a respeito da questão do aborto, transcrevo de seguida um trecho fundamental da encíclica "Evangelium Vitae", em que João Paulo II demonstra à exaustão a perversidade do aborto e a absoluta contradição de tal prática com a tradição da Igreja:

Dentre todos os crimes que o homem pode realizar contra a vida, o aborto provocado apresenta características que o tornam particularmente grave e abjurável. O Concílio Vaticano II define-o, juntamente com o infanticídio, «crime abominável».

Mas hoje, a percepção da sua gravidade vai-se obscurecendo progressivamente em muitas consciências. A aceitação do aborto na mentalidade, nos costumes e na própria lei, é sinal eloquente de uma perigosíssima crise do sentido moral que se torna cada vez mais incapaz de distinguir o bem do mal, mesmo quando está em jogo o direito fundamental à vida. Diante de tão grave situação, impõe-se mais que nunca a coragem de olhar frontalmente a verdade e chamar as coisas pelo seu nome, sem ceder a compromissos com o que nos é mais cómodo, nem à tentação de auto-engano. A propósito disto, ressoa categórica a censura do Profeta: «Ai dos que ao mal chamam bem, e ao bem, mal, que têm as trevas por luz e a luz por trevas» (Is 5, 20). Precisamente no caso do aborto, verifica-se a difusão de uma terminologia ambígua, como «interrupção da gravidez», que tende a esconder a verdadeira natureza dele e a atenuar a sua gravidade na opinião pública. Talvez este fenómeno linguístico seja já, em si mesmo, sintoma de um mal-estar das consciências. Mas nenhuma palavra basta para alterar a realidade das coisas: o aborto provocado é a morte deliberada e directa, independentemente da forma como venha realizada, de um ser humano na fase inicial da sua existência, que vai da concepção ao nascimento.

A gravidade moral do aborto provocado aparece em toda a sua verdade, quando se reconhece que se trata de um homicídio e, particularmente, quando se consideram as circunstâncias específicas que o qualificam. A pessoa eliminada é um ser humano que começa a desabrochar para a vida, isto é, o que de mais inocente, em absoluto, se possa imaginar: nunca poderia ser considerado um agressor, menos ainda um injusto agressor! É frágil, inerme, e numa medida tal que o deixa privado inclusive daquela forma mínima de defesa constituída pela força suplicante dos gemidos e do choro do recém-nascido. Está totalmente entregue à protecção e aos cuidados daquela que o traz no seio. E todavia, às vezes, é precisamente ela, a mãe, quem decide e pede a sua eliminação, ou até a provoca.

É verdade que, muitas vezes, a opção de abortar reveste para a mãe um carácter dramático e doloroso: a decisão de se desfazer do fruto concebido não é tomada por razões puramente egoístas ou de comodidade, mas porque se quereriam salvaguardar alguns bens importantes como a própria saúde ou um nível de vida digno para os outros membros da família. Às vezes, temem-se para o nascituro condições de existência tais que levam a pensar que seria melhor para ele não nascer. Mas estas e outras razões semelhantes, por mais graves e dramáticas que sejam, nunca podem justificar a supressão deliberada de um ser humano inocente.

A decidirem a morte da criança ainda não nascida, a par da mãe, aparecem, com frequência, outras pessoas. Antes de mais, culpado pode ser o pai da criança, não apenas quando claramente constringe a mulher ao aborto, mas também quando favorece indirectamente tal decisão ao deixá-la sozinha com os problemas de uma gravidez: desse modo, a família fica mortalmente ferida e profanada na sua natureza de comunidade de amor e na sua vocação para ser «santuário da vida». Nem se podem calar as solicitações que, às vezes, provêm do âmbito familiar mais alargado e dos amigos. A mulher, não raro, é sujeita a pressões tão fortes que se sente psicologicamente constrangida a ceder ao aborto: não há dúvida que, neste caso, a responsabilidade moral pesa particularmente sobre aqueles que directa ou indirectamente a forçaram a abortar. Responsáveis são também os médicos e restantes profissionais da saúde, sempre que põem ao serviço da morte a competência adquirida para promover a vida.

Mas a responsabilidade cai ainda sobre os legisladores que promoveram e aprovaram leis abortistas, e sobre os administradores das estruturas clínicas onde se praticam os abortos, na medida em que a sua execução deles dependa. Uma responsabilidade geral, mas não menos grave, cabe a todos aqueles que favoreceram a difusão de uma mentalidade de permissivismo sexual e de menosprezo pela maternidade, como também àqueles que deveriam ter assegurado — e não o fizeram — válidas políticas familiares e sociais de apoio às famílias, especialmente às mais numerosas ou com particulares dificuldades económicas e educativas. Não se pode subestimar, enfim, a vasta rede de cumplicidades, nela incluindo instituições internacionais, fundações e associações, que se batem sistematicamente pela legalização e difusão do aborto no mundo. Neste sentido, o aborto ultrapassa a responsabilidade dos indivíduos e o dano que lhes é causado, para assumir uma dimensão fortemente social: é uma ferida gravíssima infligida à sociedade e à sua cultura por aqueles que deveriam ser os seus construtores e defensores. Como escrevi na Carta às Famílias, «encontramo-nos defronte a uma enorme ameaça contra a vida, não apenas dos simples indivíduos, mas também de toda a civilização». Achamo-nos perante algo que bem se pode definir uma « estrutura de pecado » contra a vida humana ainda não nascida.

Alguns tentam justificar o aborto, defendendo que o fruto da concepção, pelo menos até um certo número de dias, não pode ainda ser considerado uma vida humana pessoal. Na realidade, porém, «a partir do momento em que o óvulo é fecundado, inaugura-se uma nova vida que não é a do pai nem a da mãe, mas sim a de um novo ser humano que se desenvolve por conta própria. Nunca mais se tornaria humana, se não o fosse já desde então. A esta evidência de sempre a ciência genética moderna fornece preciosas confirmações. Demonstrou que, desde o primeiro instante, se encontra fixado o programa daquilo que será este ser vivo: uma pessoa, esta pessoa individual, com as suas notas características já bem determinadas. Desde a fecundação, tem início a aventura de uma vida humana, cujas grandes capacidades, já presentes cada uma delas, apenas exigem tempo para se organizar e encontrar prontas a agir». Não podendo a presença de uma alma espiritual ser assinalada através da observação de qualquer dado experimental, são as próprias conclusões da ciência sobre o embrião humano a fornecer «uma indicação valiosa para discernir racionalmente uma presença pessoal já a partir desta primeira aparição de uma vida humana: como poderia um indivíduo humano não ser uma pessoa humana?».

Aliás, o valor em jogo é tal que, sob o perfil moral, bastaria a simples probabilidade de encontrar-se em presença de uma pessoa para se justificar a mais categórica proibição de qualquer intervenção tendente a eliminar o embrião humano. Por isso mesmo, independentemente dos debates científicos e mesmo das afirmações filosóficas com os quais o Magistério não se empenhou expressamente, a Igreja sempre ensinou — e ensina — que tem de ser garantido ao fruto da geração humana, desde o primeiro instante da sua existência, o respeito incondicional que é moralmente devido ao ser humano na sua totalidade e unidade corporal e espiritual: «O ser humano deve ser respeitado e tratado como uma pessoa desde a sua concepção e, por isso, desde esse mesmo momento, devem-lhe ser reconhecidos os direitos da pessoa, entre os quais e primeiro de todos, o direito inviolável de cada ser humano inocente à vida».

Os textos da Sagrada Escritura, que nunca falam do aborto voluntário e, por conseguinte, também não apresentam condenações directas e específicas do mesmo, mostram pelo ser humano no seio materno uma consideração tal que exige, como lógicaconsequência, que se estenda também a ele o mandamento de Deus: «não matarás».

A vida humana é sagrada e inviolável em cada momento da sua existência, inclusive na fase inicial que precede o nascimento. Desde o seio materno, o homem pertence a Deus que tudo perscruta e conhece, que o forma e plasma com suas mãos, que o vê quando ainda é um pequeno embrião informe, e que nele entrevê o adulto de amanhã, cujos dias estão todos contados e cuja vocação está já escrita no «livro da vida» (cf. Sal 139 138, 1.13-16). Quando está ainda no seio materno — como testemunham numerosos textos bíblicos — já o homem é objecto muito pessoal da amorosa e paterna providência de Deus.

A Tradição cristã — como justamente se realça na Declaração sobre esta matéria, emanada pela Congregação para a Doutrina da Fé — é clara e unânime, desde as suas origens até aos nossos dias, em classificar o aborto como desordem moral particularmente grave. A comunidade cristã, desde o seu primeiro confronto com o mundo greco-romano onde se praticava amplamente o aborto e o infanticídio, opôs-se radicalmente, com a sua doutrina e a sua praxe, aos costumes generalizados naquela sociedade, como o demonstra a já citada Didaké. Entre os escritores eclesiásticos da área linguística grega, Atenágoras recorda que os cristãos consideram homicidas as mulheres que recorrem a produtos abortivos, porque os filhos, apesar de estarem ainda no seio da mãe, «são já objecto dos cuidados da Providência divina». Entre os latinos, Tertuliano afirma: «É um homicídio premeditado impedir de nascer; pouco importa que se suprima a alma já nascida ou que se faça desaparecer durante o tempo até ao nascer. É já um homem aquele que o será».

Ao longo da sua história já bimilenária, esta mesma doutrina foi constantemente ensinada pelos Padres da Igreja, pelos seus Pastores e Doutores. Mesmo as discussões de carácter científico e filosófico acerca do momento preciso da infusão da alma espiritual não incluíram nunca a mínima hesitação quanto à condenação moral do aborto.

O Magistério pontifício mais recente reafirmou, com grande vigor, esta doutrina comum. Em particular Pio XI, na encíclica Casti Connubii rejeitou as alegadas justificações do aborto; Pio XII excluiu todo o aborto directo, isto é, qualquer acto que vise directamente destruir a vida humana ainda não nascida, «quer tal destruição seja pretendida como fim ou apenas como meio para o fim»; João XXIII corroborou que a vida humana é sagrada, porque «desde o seu despontar empenha directamente a acção criadora de Deus». O Concílio Vaticano II, como já foi recordado, condenou o aborto com grande severidade: «A vida deve, pois, ser salvaguardada com extrema solicitude, desde o primeiro momento da concepção; o aborto e o infanticídio são crimes abomináveis».

A disciplina canónica da Igreja, desde os primeiros séculos, puniu com sanções penais aqueles que se manchavam com a culpa do aborto, e tal praxe, com penas mais ou menos graves, foi confirmada nos sucessivos períodos históricos. O Código de Direito Canónico de 1917, para o aborto, prescrevia a pena de excomunhão. Também a legislação canónica, há pouco renovada, continua nesta linha quando determina que «quem procurar o aborto, seguindo-se o efeito, incorre em excomunhão latae sententiae», isto é, automática. A excomunhão recai sobre todos aqueles que cometem este crime com conhecimento da pena, incluindo também cúmplices sem cujo contributo o aborto não se teria realizado: com uma sanção assim reiterada, a Igreja aponta este crime como um dos mais graves e perigosos, incitando, deste modo, quem o comete a ingressar diligentemente pela estrada da conversão. Na Igreja, de facto, a finalidade da pena de excomunhão é tornar plenamente consciente da gravidade de um determinado pecado e, consequentemente, favorecer a adequada conversão e penitência.

Frente a semelhante unanimidade na tradição doutrinal e disciplinar da Igreja, Paulo VI pôde declarar que tal ensinamento não conheceu mudança e é imutável. Portanto, com a autoridade que Cristo conferiu a Pedro e aos seus Sucessores, em comunhão com os Bispos — que de várias e repetidas formas condenaram o aborto e que, na consulta referida anteriormente, apesar de dispersos pelo mundo, afirmaram unânime consenso sobre esta doutrina — declaro que o aborto directo, isto é, querido como fim ou como meio, constitui sempre uma desordem moral grave, enquanto morte deliberada de um ser humano inocente. Tal doutrina está fundada sobre a lei natural e sobre a Palavra de Deus escrita, é transmitida pela Tradição da Igreja e ensinada pelo Magistério ordinário e universal.

Nenhuma circunstância, nenhum fim, nenhuma lei no mundo poderá jamais tornar lícito um acto que é intrinsecamente ilícito, porque contrário à Lei de Deus, inscrita no coração de cada homem, reconhecível pela própria razão, e proclamada pela Igreja.

JSarto

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