quarta-feira, dezembro 08, 2004

Os cento e cinquenta anos da definição do dogma da Imaculada Conceição

O primeiro grande acto do pontificado de Pio IX - a definição do dogma da Imaculada [8 de de Dezembro de 1854] - é muito mais do que a pública expressão daquela profunda devoção a Nossa Senhora, que desde a infância tinha caracterizado a espiritualidade de Giovanni Maria Mastai Ferretti [nasceu em 13 de Maio de 1792, exactamente cento e vinte cinco anos antes da primeira aparição de Fátima]. Ele manifesta a sua profunda convicção na existência de uma relação entre a Mãe de Deus e os acontecimentos históricos, e, de modo particular, da importância do privilégio da sua Imaculada Conceição, como antídoto para os erros contemporâneos, cujo fulcro está precisamente na negação do pecado original.

O fundamento deste privilégio mariano está na absoluta oposição existente entre Deus e o pecado. Ao homem concebido no pecado, contrapõe-se Maria, concebida sem pecado. E a Maria, enquanto Imaculada, foi reservado vencer o mal, os erros e as heresias que nascem e se desenvolvem no mundo como consequência do pecado. De Maria a Igreja canta o louvor: "Cunctas haereses sola interemisti in universo mundo".

O privilégio da Imaculada deve ser considerado, pois, não de maneira abstracta e estática, mas na sua projecção histórica e social. A Imaculada não é, na verdade, uma figura isolada das outras naturezas humanas que foram, que são e que serão: "Toda a história humana é iluminada e nobilitada por esta excelsa criatura, a única que, em perfeição, é inferior somente a Deus".

Os últimos trechos da bula "Ineffabilis Deus" ajudam-nos a compreender o alcance eminentemente apologético da definição do dogma da Imaculada Conceição, para dissipar os erros de um século que, da negação do pecado original, tinha feito o seu dogma. "A grandeza deste privilégio - explicará o próprio Pio IX, ao sublinhar a oportunidade da definição - valerá muitíssimo ainda para refutar aqueles que negam ter sido a natureza humana corrompida pela primeira culpa e enaltecem as forças da razão, a fim de negar ou diminuir o benefício da Revelação. Que a Santíssima Virgem, destrutora de todas as heresias, faça arrancar de raiz e destruir este perniciosíssimo erro do racionalismo que, nestes tempos infelicíssimos, tanto aflige e atormenta, não só a sociedade civil como a própria Igreja".

Não se pode dizer que o Papa tivesse pensado inicialmente unir a definição do dogma da Imaculada à condenação dos erros modernos, cujo verdadeiro antídoto consistia, como afirmou Donoso Cortés, no dogma do pecado original, do qual só a Santíssima Virgem estava isenta. "A negação do pecado original - escrevera o pensador espanhol - é um dos dogmas fundamentais da Revolução. Supor que o homem não tenha caído no pecado original significa negar, e nega-se efectivamente, que o homem tenha sido redimido. Supor que o homem não foi redimido significa negar, e nega-se efectivamente, o mistério da Redenção e da Encarnação, o dogma da personalidade exterior do Verbo e do próprio Verbo. Supor a integridade natural da vontade humana, de um lado, e não reconhecer, de outro, a existência de outro mal e de outro pecado para além do pecado filosófico, significa negar, e nega-se efectivamente, a acção santificante de Deus sobre o homem e, com ela, o dogma da personalidade do Espírito Santo. De todas estas negações deriva a negação do dogma soberano da Santíssima Trindade, pedra angular da nossa fé e fundamento de todos os dogmas católicos".

(…)

No quadro teológico da "Ineffabilis Deus", Nossa Senhora aparece-nos, pois, como vencedora de todas as heresias da qual falam todos os Pontífices, e é à oposição entre a Virgem toda bela e Imaculada e a crudelíssima serpente, que se reconduz - como aos primeiros e fundamentais agentes - o antagonismo radical entre a Igreja e aquela Revolução dos tempos modernos, que tem os seus germes mais activos e profundos na desordem das paixões, fruto do pecado do homem decaído.

A Revolução - organização social do pecado - está destinada a ser vencida pela graça, dom divino concedido aos homens na Cruz por Nosso Senhor Jesus Cristo. A Virgem Dolorosa, Regina Martyrum, foi associada a esta obra redentora, aos pés da Cruz, por ter sofrido sobre o Calvário, em união com o seu filho, o maior dos martírios. É na Cruz que se funda a mediação universal e omnipotente de Maria, verdade que constitui a maior razão de esperança para todos aqueles que combatem a Revolução. Se a serpente, cuja cabeça foi esmagada pela Virgem Imaculada, é a primeira revolucionária, Maria, dispensadora e tesoureira de todas as graças, é, na verdade, o canal através do qual os católicos alcançarão as graças sobrenaturais e necessárias para combater e esmagar no mundo a Revolução.

A luta entre a serpente e a Virgem, entre os filhos da Revolução e os filhos da Igreja, delineia-se, pois, como a luta total e irreconciliável entre duas "famílias espirituais", como tinha profetizado no século XVIII São Luís Maria Grignion de Montfort, o santo ao qual se deve a leitura talvez mais inspirada e luminosa da passagem do Génesis que constitui o fulcro da "Ineffabilis Deus": "Porei inimizades entre ti e a mulher, entre a tua descendência e a descendência dela; ela te esmagará a cabeça e tu armarás insídias ao seu calcanhar" (Gn 3, 15).

"Deus - comenta São Luís Maria - não pôs somente uma inimizade, mas inimizades, e não somente entre Maria e o demónio, mas também entre a posteridade da Santíssima Virgem e a posteridade do demónio. Por outras palavras, Deus pôs inimizades, antipatias e ódios secretos entre os verdadeiros filhos e servos da Virgem Maria e os filhos e escravos do demónio. Não há entre eles a menor sombra de amor, nem correspondência íntima existe entre uns e outros!". A oposição entre estas duas famílias espirituais está destinada a dividir implacavelmente a humanidade, até ao fim da história. Sobre este fundo de quadro situa-se a luta entre a Igreja e a Revolução.

As aparições de Fátima de 1917, nas quais foi explicitamente pedida à humanidade a prática da devoção ao Coração Imaculado de Maria, colocaram o segundo selo, depois de Lourdes, à proclamação de Pio IX. Naquele mesmo ano de 1917, a notícia das provocadoras manifestações maçónicas pelas ruas de Roma, que chegaram a passar por debaixo da janelas do Vaticano, levou um jovem padre franciscano polaco, de vinte e três anos, frei Maximiliano Kolbe, a constituir, na tarde do dia 6 de Outubro, a "Milícia da Imaculada", com o fim de "trabalhar pela conversão dos pecadores, heréticos, cismáticos, judeus e especialmente dos maçons; e a santificação de todos sob o patrocínio e a mediação da bem-aventurada Virgem Imaculada". São Maximiliano Kolbe desenvolveu o apostolado da sua Milícia, contrapondo, sobretudo por meio da imprensa, a verdade da doutrina católica aos erros dos inimigos da Igreja, para acelerar "a instauração do misericordiosíssimo Reino da Imaculada sobre a terra". Apóstolo no século XX, do Reino de Maria, São Maximiliano escreve: "Vivemos numa época que poderia ser chamada o início da era da Imaculada. Sob o seu estandarte haverá de combater-se uma grande batalha e haveremos de hastear as suas bandeiras sobre as fortalezas do rei das trevas".

As raízes teológicas desta visão profética (…) encontram-se na "Ineffabilis Deus", o texto de Pio IX, concebido no exílio de Gaeta, durante a Revolução romana triunfante. Ele constitui a premissa do "Syllabus", ao qual está intimamente ligado.


Roberto de Mattei - Pio IX - Porto, Civilização Editora, 2000 - texto extraído das páginas 207 a 215.

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