sábado, julho 31, 2004

Bibliofilias

O amigo do outro é que tinha razão, quando lhe dizia que poderiam ser ricos não fora o vício dos livros… Será que os livros servem tão-só para ser lidos? Não existirá um prazer imediatamente adstrito ao simples facto de possuirmos, termos, sentirmos nas nossas mãos um alfarrábio há muito desejado, mesmo que não o leiamos de imediato? Que dizer da alegria que certas compras nos dão por si sós?.. E a bibliofilia, a partir de certo patamar, não se aproximará de uma compulsão, com os perigos inerentes a todas as adições?... Responda quem quiser. Regresso no Domingo; o Sábado, esse, é para… leituras, boas leituras!

O Sexo dos Anjos

E porque estamos em maré de aniversários, felicito o Manuel Azinhal, grande amigo desta "Casa", pela passagem do primeiro aniversário daquele que é seguramente um dos melhores e mais recomendáveis sítios da blogosfera nacional - "O Sexo dos Anjos".

sexta-feira, julho 30, 2004

O que é o modernismo?

Tendo este blogue por lema o combate cultural antimodernista, vim a deparar, durante a leitura da obra do Padre Leonardo Castellani, S.J., "Los Papeles de Benjamin Benavides", com uma das mais bem elaboradas definições de modernismo que alguma vez me foi dada a conhecer. Anote-se que neste livro extraordinariamente bem escrito, originalmente publicado em 1954 e de leitura simplicíssima como é próprio das verdadeiras obras-primas, Castellani analisa aquele que foi o seu tema favorito de estudo ao longo da sua vida - o Apocalipse de São João. Num conjunto de diálogos que o narrador, o jornalista argentino Delrey, alter-ego do autor, trava com um rabino sefardita convertido ao Catolicismo, Don Benya ou Benjamin Benavides, Castellani sustenta de modo muitíssimo convincente ser o Apocalipse um livro simultaneamente retrospectivo e prospectivo, no qual é narrada e/ou prevista toda a História da Igreja até ao final dos tempos, que serão consumados com a segunda vinda de Cristo à Terra. Desta matéria falarei mais detalhadamente num próximo artigo, por agora, cingindo-me à definição do que seja o modernismo:

"- Qué es el modernismo - pregunté yo.
El judío se rascó la cabeza. Parecía agotado.
- No se puede definir brevemente - dijo con voz plañidera-. Es una cosa que era y no es y que será; y cuando sea, durará poco. Técnicamente los teólogos llaman "modernismo" a la herejía aparentemente complicada y difícil que condenó el Papa Pio X en la Encíclica Pascendi; pero esa herejía no es más que el núcleo explícito y pedantesco de un impalpable y omnipresente espíritu que permea el mundo de hoy. Su origen histórico fué el filosofismo del siglo XVIII, en el cual con certero ojo el P. Lacunza vio la herejía del Anticristo, la última herejía, la más radical y perfecta de todas. Desde entonces acá ha revestido diversas formas, pero el fondo es el mismo, dice siempre lo mismo:

Cuá cuá - cantaba la rana
cuá cuá - debajo del río.

- Y qué dice?
- Cualquiera interpreta lo que dice una rana! - dijo riendo el rabí - es más un ruido que una palabra. Pero es ruido mágico, arrebatador, demoníaco, lleno de "signos y prodigios"... Atrae, aduerme, entontece, emborracha, exalta.
- Pero al menos así aproximado, a bulto;... Ánimo, Don Benya, non se achique!
- El "cuá - cuá" del liberalismo es "libertad, libertad, libertad"; el "cuá - cuá" del comunismo es "justicia social"; el "cuá - cuá" del modernismo, de donde nacieron los otros y los reunirá un día, podríamos asignarle éste: "Paraíso en Tierra"; Dios es el Hombre; el hombre es dios"
- Y la "democracia"? - pregunté yo.
- Es el coro de las tres juntas: democracia política, democracia social y democracia religiosa:

Demó - cantaba la rana
Crácia - debajo del río.

- Y la democracia cristiana? - le dije sonriendo.
- Nunca he entendido del todo lo que entienden los entendidos por ese compuesto, aunque entiendo que se puede entender por él varias cosas buenas - barbotó él -, a saber: "amor del pueblo", "representación popular", "participación de todos en lo político", o simplemente "gobierno bueno" - gruñó el judío-. Con este mixto no me meto; con el simple me meto yo, con el simple! Con la canción de la rana, que significa un régimen político religiosamente salvífico y por tanto necesario y hasta obligatorio para todos los pueblos "núbiles" que decía Víctor Hugo. Lo cual es una simpleza. Y una herejía definitiva contra el vero salvador, contra "el único nombre que puede salvar al hombre", que dijo San Pedro. "las nuevas herejías ponen el hacha no en las ramas sino en la misma raíz" - dijo Pio X en la encíclica Pascendi.
- Pero herejías siempre las ha habido, y algunas muy extremadas y perversas... por qué estas tres de ahora han de ser las Tres Ranas o Demonios; y no quizás otras tres cualesquieras... por ejemplo, otras tres que surjan en el futuro de aquí a mil años, pongamos por ejemplo?
- Eche años! - dice el hebreo con "rictus"-. No, estas son las tres primeras herejías con efecto político y alcance universal; y son las tres ultimas herejías, porque no se puede ir más allá en materia de falsificación del cristianismo. Son literalmente los "pseucristos" que predijo el Salvador. En el fondo de ellas late la "abominación de la desolación"...
- Qué es la "abominación de la desolación"? Tengo entendido que los Santos Padres entienden por esa expresión semítica la idolatría...
- La peor idolatría. Pues en el fondo del "modernismo" está latente la idolatría más execrable, la apostasía perfecta, la adoración del hombre en lugar de Dios; y éso bajo formas cristianas y aún manteniendo tal vez el armazón exterior de la Iglesia".

Nova Frente

Embora já tivesse feito referência à data num comentário deixado no blogue do amigo Pedro Guedes, gostaria de felicitar neste espaço o BOS pela passagem do primeiro aniversário do seu "Nova Frente". Há pequenos gestos que não se esquecem: foi ele, em Fevereiro de 2004, o primeiro a saudar a aparição d'"A Casa de Sarto"; já então, o "Nova Frente", juntamente com o "Último Reduto" e "O Sexo dos Anjos", era um dos meus pontos de visita diária indispensáveis e assim há-de continuar a sê-lo por muito e bom tempo.

Fica aqui, dedicado ao BOS, o Salmo 42 com que iniciei a minha aventura na blogosfera, Salmo que na Missa de rito latino-gregoriano constitui a oração rezada pelo sacerdote celebrante antes de subir ao altar para oferecer novamente em sacrifício Jesus Cristo:

"Faz-me justiça, ó Deus,
e defende a minha causa contra a gente sem piedade!
Livra-me do homem mentiroso e perverso.
Tu, ó Deus, és o meu refúgio. Por que me rejeitastes?
Envia a tua luz e a tua verdade,
para que elas me guiem e conduzam
à tua montanha santa, à tua morada.

Eu irei ao altar de Deus
ao Deus que é alegria da minha juventude.
Ao som da harpa te louvarei, ó Deus, meu Deus.

Porque estás triste, minha alma, e te perturbas?
Confia em Deus: ainda o hei-de louvar.
Ele é o meu Deus e o meu salvador".

quarta-feira, julho 28, 2004

A Descoberta da Outra

O leitor amigo Marcus Pimenta, sabedor da estima que neste blogue se tem pela pessoa de Gustavo Corção, dá a conhecer, a partir do outro lado do Atlântico, um interessantíssimo sítio consagrado à divulgação dos trabalhos de importantes figuras do pensamento brasileiro, sítio esse que possui uma excelente secção dedicada ao autor d'"O Século do Nada", contendo alguns dos importantes artigos que o mesmo escreveu em defesa da tradição católica, nos anos 70, no jornal "O Globo", do Rio de Janeiro, e que ficaram a constituir uma das parcelas mais fecundas da sua obra. A título exemplificativo, deixamos aqui transcrito o notável "A Descoberta da Outra", publicado naquele periódico carioca em 29/12/1977, onde Corção faz o cotejo da verdadeira Igreja Católica com a sua sucedânea modernista:
 
"Um leitor que se diz assíduo, numa longa conversa telefônica, estranhou o pós-conciliar. O leitor entende o termo como se significasse a mesma Igreja Católica, na era pós-conciliar. Bem sei que nesse período conturbado continua a existir, na terra, a Igreja Católica dita militante. Ora, minha sofrida e firme convicção, tantas vezes sustentada aqui, ali e acolá é que existe, entre a Religião Católica professada em todo o mundo católico até poucos anos atrás e a religião ostensivamente apresentada como "nova", "progressista", "evoluída", uma diferença de espécie ou diferença por alteridade. São portanto duas as Igrejas atualmente governadas e servidas pela mesma hierarquia: a Igreja Católica de sempre, e a Outra. E note bem, leitor: quando acaso der a essa outra o nome de Igreja pós-conciliar não quero de modo algum insinuar a infeliz idéia de que, após o Concílio, a Igreja de Cristo se teria transformado a ponto de tornar-se irreconhecível, devendo os fiéis de bem forma­da doutrina católica acreditar nessa nova forma visível da Igreja, por pura disciplina, ainda que a maioria das pregações e dos novos ensinamentos sejam ostensivamente diversos e as vezes opostos à doutrina católica. Não! A Igreja Católica e Apostólica continua a existir na era pós-conciliar, submetida a duras provações, mas sempre permanente e fiel guardiã do depósito sagrado. 
 
Se o leitor me perguntasse agora quais são as essenciais diferenças que separam as duas religiões, eu responde­ria: diferença de espírito, diferença de doutrina, diferença de culto e diferença moral. Como terei chegado a tão assustadora convicção? Com muito sofrimento e muito trabalho, são milhares os católicos que chegaram à mesma convicção. 
 
Começamos por confrontar os novos textos, as novas alocuções, as novas publicações pastorais com a doutrina ensinada até anteontem. A começar pelos textos emanados dos mais altos escalões, citemos alguns daqueles que mais dolorosamente e mais irresistivelmente nos levaram à conclusão de que se inspiram em outro espírito e se firmam em outra doutrina. Entre os textos conciliares, citamos os seguintes: Constituição Pastoral sobre a Igreja e o Mundo Atual (Gaudium et Spes); Decreto sobre o Ecumenismo (Unitatis Redintegratio); Declaração sobre a Liberdade Religiosa (Dignitatis Humanae); Discurso de Encerramento do Concílio, 7 de Dezembro de 1965; Institutio Generalis do Novus Ordo Missae: Ponto 7 (na primeira redação, de 1967, e principalmente a segunda redação de 1970). Além desses documentos dos mais altos escalões, poderíamos encher as páginas deste jornal com obras e pronunciamentos de cardeais, arcebispos, bispos e padres que eram bisonhos, retraídos e discretos quando tinham vaga consciência de suas deficiências filosóficas e teológicas e que subitamente descobrem que na "nova Igreja" podem dizer tudo o que lhes vem à boca que fala ou à mão que escreve. O que menos se conhece é a Teologia, mas o que mais abunda na Nova Igreja são os "teólogos da libertação".
 
Devemos dar especial atenção aos pronunciamentos das Conferências Episcopais que rarissimamente dizem coisa parecida com a Santa Religião ensinada por Jesus Cristo. Basta prestar atenção, ler, e comparar toda a prodigiosa logorréia dos reformadores com o que já lemos dos santos doutores, dos santos Papas, e de toda a Tradição católica. Eles não falam a mesma língua de nossa Mãe Igreja, não usam o mesmo léxico, não seguem o mesmo espírito. Evidencia-se com brutalidade dolorosa o fato de ter sido a Igreja invadida, ou de ter se deixado seduzir pelos mesmos inimigos que combatia. Uma das notas mais características do novo espírito é a da tolerância erigida em máxima virtude, e o correlato horror por qualquer espécie de luta ou combate. Os novos levitas corrompem a juventude, destroem as famílias, mas quando alguém ergue a voz pedindo punição severíssima para os seqüestradores e para os traficantes de drogas, logo começam a esganiçar gritinhos: Violência, não! Violência, não! 
 
E aqui encerro a concisa resposta que dou ao leitor escandalizado: foi a atenta observação desses fatos, foi a paciente leitura de himalaias de mediocridade e foi a comparação gritante entre o que ensinam e o que ensinaram os santos, e creio que foi principalmente a graça de Deus certa­mente pedida cada dia, cada hora, nessa especial e gravíssima intenção, que nos levaram a essas conclusões. Se é preciso usar o recurso dos gritos que tanto usam hoje, gritarei eu também, e não esconderei a reação que tive em 1965 após a primeira leitura da Constituição sobre a Sagrada Liturgia: corri ao telefone do amigo mais próximo já chorando, já engasgado de soluços que me sacudiam o corpo todo. E gritei: eles estão loucos! Eles estão loucos! E mais não digo. 
 
Vejo em seguida nos meios católicos um dilúvio de calamidades pavorosas. Nas melhores famílias católicas, tradicionalmente católicas, os jovens, pervertidos pelos professores de colégios católicos, se transformam em anormais, comunistas, criminosos seqüestradores, ou em inutilizados toxicômanos. Meu Deus! Como pode? Como pode? Como Pode? O mistério da permissão divina nos traz vertigens quando pensamos em tantos bons pais tão terrivelmente atingidos.
 
 Mas quando pensamos que a crise de costumes que dissolve todos os valores morais de uma civilização é principalmente gerada pela impiedade e pelo orgulho dos homens, que reivindicam todas as liberdades e todos os direitos; e principalmente quando pensamos que é exatamente nessa hora sombria que os homens de Igreja julgam ter feito uma descoberta muito inteligente, e muito oportuna – a de se abrir para o mundo e até a de nele procurar inspirações para o novo humanismo que apregoam – então, com temor e terror, pensamos que a misteriosa permissão divina, já nos foi profeticamente revelada na Sagrada Escritura, e durará até o dia em que os homens descobrirem apavorados que desprezaram Deus, que contrariaram Deus, que se riram de Deus. E, nesse dia de espantosa desolação descobrirão "que não passam de homens" e que só Deus é o Senhor. 
 
Neste ponto da entrevista, o leitor me faz uma pergunta muito séria e de importância capital:
 
 – Qual é, na sua convicção, o traço principal, o conteúdo essencial dessa Outra religião que o senhor vê nos re­cintos da Igreja Católica?
 
 – Mais uma vez insistido neste ponto: a desordem que se observa nos meios eclesiásticos e que produz tais malefícios, não pode ser apenas uma pura desordem. A desfiguração da Igreja do Verbo Encarnado, isto é, da religião do Deus que se fez homem, tem uma figura: a da religião do homem que se faz Deus. Essa é a figura da desfiguração.
 
 – Não foi o próprio Papa Paulo VI quem disse no discurso de encerramento do Concílio que "a Igreja de Deus que se fez homem encontrou-se no Concílio com a religião do homem que se faz Deus"? 
 
– Exatamente. E se o amigo continuar a atenta leitura desse documento, se convencerá de que não exagero nem me perco em fantasias se lhe disser que a figura essencial da Outra é a de um humanismo que se torna uma nova religião que difere do cristianismo por seu desolado naturalismo, isto é, pela ausência da mais bela de todas as obras de Deus – a ordem da graça e da salvação. 
 
Eles tentam disfarçar a chatice e a tristeza sinistra e feia, com retalhos de cristianismo sem vida mas a anemia profunda do corpo sem sangue está na visibilidade da Outra que só serve para eclipsar a Santa Visibilidade da Igreja de Cristo. 
 
– E como poderá a Igreja Católica desembaraçar-se desses equívocos e voltar a ser visível, dourada, um pouco mais hoje, um pouco menos amanhã, mas sempre anunciando aos homens, aprisionados no efêmero, um Reino que não é deste mundo?
 
 – O senhor espera ainda ver neste mundo a Igreja Militante em todo o seu esplendor? 
 
– Não. A desordem é profunda demais e chegou aos vasos capilares dos membros da Igreja. Se ela não fosse obra sobrenatural de Deus eu diria, em termos usados pelos físicos, que a desordem é sempre prodigiosamente irreversível.
 
 E, no caso, a improbabilidade de tal recuperação seria ex­pressa por números espantosos como dez elevado a menos mil (10-1000) que, na verdade, não exprimem nada. Não são números concretos nem entes de razão; quando muito diríamos que só são entes de giz no quadro negro. Emile Borel dizia francamente que, diante de tais improbabilidades, é melhor dizer simplesmente que são impossíveis. Mas nós aqui estamos falando da mais maravilhosa das obras de Deus: 
 
"Deus qui humanae substantiae dignitatem mirabiliter condidisti, et mirabilius reformasti" (Oração do Ofertório) 
 
E o que a nós parece impossível, é possível para Deus. Mas nossa esperança teologal não nos obriga a esperar acontecimentos neste mundo. No ponto da vida em que me acho, só posso esperar, pela misericórdia de Deus e pelo Sangue de Cristo, a felicidade de ver brevemente a Igreja do Céu em toda a sua beleza eterna e fora do alcance dos flagelos humanos. 
 
E é a alegria dessa esperança teologal que, nestes dias de transição desejo aos meus leitores e companheiros de trabalho. 

sexta-feira, julho 23, 2004

Correio de Buenos Aires

Chegou ontem às minhas mãos, proveniente da capital dos país das Pampas, um pequeno volume postal contendo duas preciosidades bibliográficas da autoria do Padre Leonardo Castellani, S.J., o jesuíta que nos anos 40-50, quase sozinho, contra tudo e todos na sua ordem, não hesitou em denunciar e combater o modernismo que já então avassalava implacavelmente a outrora gloriosa Companhia de Jesus. Assim, os próximos dias prometem-me, mais do que horas e horas seguidas de boa e entusiástica leitura, um prazer intelectual puro provocado por "Los Papeles de Benjamin Benavides" e "Su Majestad Dulcinea"; a seu tempo, darei conta das minhas impressões neste espaço.

Dhimmitude - 1

            Por intermédio do blogue do Buiça, tomei conhecimento de um artigo francês, propugnando a adesão da Turquia à União Europeia, eivado de falsidades bastante básicas; todavia, há males que vêm por bem, pois aproveito a ocasião para analisar a "dhimmitude", ou seja, o tradicional regime religioso-jurídico a que ficavam subordinados todos aqueles que caíam sob domínio muçulmano, mas que não se convertiam ao Islão. Irei seguir de perto as obras da historiadora britânica, de origem egípcia, Bat Ye'or, nomeadamente o seu "The Decline of Eastern Christianity under Islam - From Jihad to Dhimmitude", colocando um especial ênfase na situação do Império Otomano, na medida em que quem não aprende com os erros do passado, pode repeti-los no futuro. Para já, dou a palavra a Bat Ye'or, que exporá o processo de recrutamento dos janízaros, tropa de elite cujos membros eram provenientes na sua totalidade dos Balcãs. Este, por si só, desmente o mito da benignidade do domínio turco sobre essa região do mundo:

            "Another important process of Islamization was devshirme. This practice, introduced by the Ottoman sultan Orkhan (1326-59), consisted of a regular levy, as tribute, of a fifth of the Christian children from the conquered Balkan regions. The interval between levies varied with needs. Some places were exempt: Constantinople, Jannina, Galata, Rhodes. These youngsters, aged between fourteen and twenty, were converted to Islam and entered the corps of janissaries, military militias formed almost exclusively of Christians. The periodic levies, which took place in contingents of a thousand, subsequently became annual. The Christian children were requisitioned from among the Greek, Serbian, Bulgarian, Armenian, and Albanian aristocracy and from among the children of priests. At a fixed date, every father had to gather with his sons at the central place of the village. The recruiting agents, themselves janissaries, then selected the handsomest and most robust in the presence of the qadi. No father could avoid this blood tribute on pain of severe punishment.

            These levies of children gave rise to abuses, the recruiters taking a surplus of children in order to sell them back to their parents. If their poverty-stricken families were unable to redeem them, they remained slaves. To discourage runaways, children were transferred to remote provinces and entrusted to Muslim feudal masters who threated them harshly, as slaves. Removed from their families, hardened by painful experiences, and turned into fanatics by their education, these soldiers became the cruelest weapon against their own people. According to the Byzantine historian Ducas, the janissaries in the personal guard of Bayazid I (1389 - 1402) were "all hired and gathered from various Christian nations".

            Another parallel recruitment system operated. It provided for the levy of children aged six to ten (ichoghlani), reserved for sultan's seraglios. Confined in the palaces and entrusted to eunuchs, they underwent a tyrannical training for fourteen years and furnished the highest hierarchy of officials to the Ottoman state. This regular bloodletting from the conquered peoples increased the Muslim population and correspondingly reduced that of Christians. The devshirme was theoretically abolished in 1656, but recruitment of ichoghlani continued until the mid-eighteenth century".


quarta-feira, julho 21, 2004

A Descoberta do Outro

Acabei de ler o livro "A Descoberta do Outro", de Gustavo Corção, de que aqui havia já deixado um extracto, numa edição antiga datada de 1945, que tive a felicidade de descobrir, via net, neste simpático sebo de Fortaleza. Sebos, assim são conhecidos, de modo peculiar, os alfarrabistas no outro lado do Atlântico… Embora exista uma edição recente da obra em questão disponível no mercado brasileiro, na medida em que nesta última, por iniciativa da respectiva editora - a Agir -, foram introduzidas algumas alterações arbitrárias ao texto originalmente escrito pelo seu autor, a mesma não se aconselha, devendo ser lida com a necessária parcimónia.
 
"A Descoberta do Outro", aparecida em 1944, é o primeiro livro de Gustavo Corção, no qual este narra a sua conversão ao Catolicismo. Conhecedor das obras-primas finais do mesmo - "Dois Amores, Duas Cidades" e o absolutamente fantástico "O Século do Nada" -, bem como dos magníficos artigos resultantes da sua colaboração com a
"Permanência", nos quais a crise modernista pós-conciliar foi devidamente escalpelizada e combatida, confesso que sentia uma certa relutância em conhecer o seu trabalho inicial, receoso que estava de que ele não tivesse a mesma qualidade de obras subsequentes. Graças a Deus, enganei-me.
 
Em "A Descoberta do Outro", Corção demonstra já em toda a plenitude o seu vigor literário e doutrinário, a mestria inconfundível que o fazia mesclar o melhor português com a mais magnífica das doutrinas. É certo que, aqui e acolá, ao longo da sua narrativa, ainda se notam algumas arestas modernistas que posteriormente seriam completamente limadas, ou seja, o elogio incondicional de Jacques Maritain ou a admiração manifestada pelo intelectual católico brasileiro, de tendências progressistas, Alceu Amoroso Lima: no que tange ao primeiro, Corção viria mais tarde a distinguir o bom Maritain - o de "Antimoderne", dos tempos de militância monárquica nacionalista na Action Française, de Charles Maurras - do mau Maritain, modernista assumido a partir de 1932, influenciado por Emmanuel Mounier, e autor de "Cristianismo e Democracia" e "Humanismo Integral"; no que concerne ao segundo, romperia com ele na altura do Concílio Vaticano II, abandonando o Centro Dom Vital para fundar o seu querido Centro Permanência. Porém, estes pequenos pormenores não afectam minimamente a qualidade global do livro, de que aqui deixo exactamente os últimos períodos, nos quais Gustavo Corção relata as impressões que lhe deixou o momento da recepção do escapulário de oblato beneditino, no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro:
 
"O rito cristão é realmente um teatro só para crianças; é preciso ser como as crianças para aceitar o sentido profundo das cenas muito simples e das palavras decoradas. A palavra decorada do ritual quer dizer palavra do coração, palavra gravada, guardada para ser depois pronunciada no diálogo da boa vontade. E é por isso que os postulantes, naquele dia, apresentaram-se diante do abade muito contentes, carregando palavras em seus corações e já sabendo de antemão as outras que ouviriam.
 
A cerimónia começa dizendo o padre mestre ao abade que ali estão alguns seculares que vieram bater à porta do mosteiro para pedir alguma coisa. Pergunta então o abade aos hóspedes o que pedem eles, e todos, com uma só boca, recitam o pedido de fraternidade na regra beneditina. Depois desses preliminares e já vestidos com o escapulário, tem lugar uma cena particularmente importante.
 
O leitor há de estar lembrado que em outros tempos andei em rodas marxistas e nietzschistas, hesitando entre a sociedade sem classes e a grande raça caucásica, não sabendo se deveria levantar a mão direita dura como um dardo, ou a esquerda com o punho fechado em sinal de revolta. Pois agora, diante do abade, que representava outro Pai, eu já não tive que hesitar porque levantei as duas mãos. E todos nós, os doze oblatos novos, levantamos as mãos como orantes antigas, cantando as palavras decoradas: - Suscipe me, Domine, secuundum eloquium tuum…
 
E aí está, leitor amigo, como acaba esta história, um pouco no gosto das novelas policiais, estando eu desarmado, inteiramente entregue, "hands up", como um prisioneiro de Deus".

domingo, julho 18, 2004

18 de Julho de 1936 - 18 de Julho de 2004

Comemora-se hoje o sexagésimo oitavo aniversário do levantamento nacionalista espanhol, que deu início à Cruzada de 1936-1939 empreendida em defesa das mais profundas tradições do Ocidente contra a barbárie marxista. Ao longo desta semana, relembraremos a Guerra de Espanha numa série de textos de vários autores e continuaremos a publicação da poesia nacionalista do conflito. Aqui fica, por ora, um notável texto da autoria de Robert Brasillach e Maurice Bardèche, extraído da sua "Histoire de la Guerre d'Espagne", originalmente publicada em 1939:
 
"Dans les années qui ont suivi la Grande Guerre, les divers mouvements nationalistes, soit vainqueurs, soit candidats au pouvoir, quelles que fussent leurs divergences, ont apporté chacun un trait particulier et renforcé la notion d'une révolution universelle, analogue à celle qui brûla toute l'Europe en 1848 par exemple. Mais, alors que toutes les doctrines diverses ou bien attendaient encore le pouvoir ou bien s'étaient emparé sans longue guerre (même le national-socialisme allemand), une lute terrible éclatait sur l'une des plus nobles terres de l'Europe, et opposait en combats sanglants le fascisme et l'antifascisme. L'Espagne ainsi achevait de transformer en combat spirituel et matériel à la fois, en croisade véritable, la longue opposition qui couvait dans le monde moderne. Ses brigades internationales, des deux côtés, scellaient dans le sang les alliances. Pour toute la planète, des hommes ressentaient comme leur propre guerre, comme leurs propres victoires et leurs propres défaites, le siège de Toledo, le siège d'Oviedo, la bataille de Teruel, Guadalajara, Madrid et Valence. Le coolie chinois, le manoeuvre de Belleville, le voyou perdu dans les brouillards de Londres, le chercheur d'or pauvre et deçu, le maître des paturâges hongrois ou argentins, pouvaient tressaillir d'angoisse ou de plaisir devant quelque nom mal ortographié, sur quelque journal inconnu. Dans la fumée grise des obus, sous le ciel en feu parcouru par les avions de chasse, russes contre italiens, les contradictions ideológiques se résolvaient en cette vieille terre des actes de foi et des conquérants, par la souffrance, par le sang, par la mort. L'Espagne donnait sa consécration et sa noblesse définitive à la guerre des idées.
 
Ainsi se créent les mythes. L'homme à qui Mussolini a déclaré tout devoir, Georges Sorel, a longuement expliqué dans les "Réflexions sur la violence", la valeur créatrice des mythes. "Il importe fort peu, déclarait-il, de savoir ce que les mythes renferment de détails destinés à apparaître sèchement sur le plan de l'histoire future, ce ne sont pas des almanachs astrologiques... Il faut juger les mythes comme moyens d'agir sur le présent". Les flammes de la guerre espagnole ont achevé de donner à ces images leur pouvoir d'expansion et leur coloration religieuse.
 
C'est parce que la guerre d'Espagne a pris cet aspect, n'en doutons pas, qu'elle a déchaîné de toute part les passions, et nous concéderons volontiers aussi que c'est dans cette mesure qu'elle peut devenir un danger par ses conséquences. Mais il ne faut pas oublier, au delá de toutes les entités idéologiques, un fait beaucoup plus simple: elle a barré la route au communisme internationale.
 
(...)
 
Enfin, cette longue lutte nous aura permis de saluer, en toute impartialité, la renaissance d'un grand peuple. En mettant les choses au pire, et même si l'Espagne devait se rendormir, elle aurait présenté au monde, pendant ces trente mois, des images assez exaltantes et assez belles pour mériter d'être admirées et aimées. Les choses humaines, certes, ne vont pas sans alliage: il y a eu, sans doute, des erreurs, de même que de l'autre côté, quels que puissent être les crimes véritablement effroyables et l'extraordinaire perversité morale des marxistes au pouvoir, il y a eu chez beaucoup de combattants du courage, des sacrifices et de la foi. Mais la justice de la cause, mais le sursaut après ces longs mois de duperies et de fautes qui ont précédé la Révolution nationale, mais la beauté des instants le plus hauts de cette guerre (Tolède, Oviedo, la Cabeza), le sens exact de la discipline, l'exaltation nationale, ont fait de l'Espagne en lutte, même pour ceux à qui elle était dejá chère, auparavant, une sorte de révélation nouvelle. L'un des fruits les plus étonnants et les plus beaux du péril aura été l'union. Quoi qu'il en soit des certains  récits difficiles à vérifier, il est sûr que les promoteurs de la Révolution Nationale venaient de plusieurs points de l'horizon: traditionalistes, libéraux, fascistes, républicains. Ils se sont tous reconciliés, ceux qui étaient partis de la vérité et ceux qui étaient partis de l'erreur dans le même amour de la nation espagnole. Nous qui avons été les témoins, n'oublions pas nos souvenirs".

quinta-feira, julho 15, 2004

De novo, a Turquia

O futuro Presidente da Comissão Europeia, levantando um pouco o véu ao que aí vem, anunciou que, a título pessoal - a inefabilidade destes línguas de pau… -, não se opõe à adesão da Turquia à União Europeia, na condição de a mesma cumprir os critérios democráticos. Certo, já sabemos que a Europa não é um clube cristão… Mas o que será então? Um clube de ateus e jacobinos?...

Ingenuidade

Numa época infestada de malícia pura como é a nossa, causa-me confusão que a generalidade dos analistas políticos possam ter sido tão ingénuos acerca da hipotética candidatura de António Vitorino à liderança do PS, mostrando-se agora surpreendidos - alguns genuína, outros hipocritamente - com o facto de a mesma não ter ido avante. Esqueceram-se de que em partidocracia os bastidores são parte não despicienda do jogo e de que nele ganham não os peixes mais vistosos, mas os que conseguem nadar em águas mais profundas… Como diziam os antigos, felizes os que conhecem as causas das coisas.

terça-feira, julho 13, 2004

Inteligência e Vontade

A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto sem que o objeto importe. Não se mede pelo objeto, não tem proporção com ele. Precisa do objeto para sair do sujeito e voltar ao sujeito. Ter razão importa sem que o objeto importe.

(…)

Podemos então localizar a ponta da raiz, o fibrilo nervoso onde mora o princípio de uma opinião. Eliminadas as outras partes do nosso interior, sobra aquela que é mais irritável, mais ferida, aquela que vive a esbarrar na limitação incómoda dos objectos: a vontade.

A opinião é segregada pela vontade; não vem do conhecimento mas de um apetite. O mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a inteligência e o objeto. A justa proporção com o objeto fica prejudicada, só podendo existir quando a inteligência está em livre confronto com o objeto, isto é, na contemplação.

Gostaria de tornar bem clara a imensa gravidade desse problema e a importância vital do restabelecimento, na estrutura da nossa pessoa, desse respeito pelo objeto, dessa abertura para fora pela qual tanto a inteligência como a vontade, a boa vontade, aspiram à objetividade. O grande desvio do pensamento moderno tem origem nessa inversão interior, pela qual a vontade se arroga um direito de conquista onde somente à inteligência cabe o primado. Todos nós, mais ou menos europeus, estamos impregnados de idealismo filosófico até à medula dos ossos, estamos convencidos que a nossa dignidade mais alta reside nesse subjetivismo obstinado que tenta reduzir todas as coisas do céu e da terra a meia dúzia de opiniões. Muita gente pensa que isso é grandeza e marca de caráter e que a personalidade humana se define por esse fechamento diante dos objetos e se engrandece por essa deformação interior. Diante dos objetos mais simples o homem liberal, que agasalha suas opiniões, que desconfia de tudo que não seja o morno recôncavo da sua interioridade, cai em guarda numa posição crispada; a vontade mete-se de permeio entre a porta dos sentidos e a inteligência, e como o seu caminho é mais curto, ou porque seja ela mais ágil, sua sugestão chega antes do conceito e gera o preconceito. A inteligência perde a liberdade e a vontade então convence o sujeito que ele é um livre pensador.

É nessa questão nevrálgica da liberdade que a vontade mais se excita, e, no diálogo interior, clama que lhe pertence exclusivamente a decisão nessa matéria. Como na vida exterior vive sendo ofendida, esbarrando, chocando-se, atritando-se, a vontade procura se desforrar e volta-se para dentro. Volta-se contra o próprio sujeito, enrola-se no cerne nobre da pessoa e morde a inteligência. A liberdade psicológica e voluntariosa, nascida no conflito com as objetividades, substitui a liberdade ontológica que tem raiz na adequação entre a inteligência e o ser. O primado da inteligência é usurpado, e então, em vez do reto juízo nasce a opinião.


Gustavo Corção - A Descoberta do Outro - Rio de Janeiro, 2ª Edição, 1945 - páginas 79 a 81

sábado, julho 10, 2004

Crise partidocrática - 3

Independentemente da decisão concreta tomada pelo Presidente da República, e a esta hora já conhecida de todos, acima de tudo, parece-me importante realçar que no sistema constitucional português vigente não existe qualquer eleição do Governo, mas antes do Parlamento, pelo que se deve afastar a ideia de que as vicissitudes que afectem aquele primeiro são extensíveis, sem mais, a este último. Assim, a legitimidade constitucional de um Governo decorre da sua aprovação pelo Parlamento devidamente empossado pelo corpo eleitoral para um mandato quadrienal, sendo igualmente legítimos todos os Governos que nesse período tal Parlamento formalize.

Desta maneira, como já referi anteriormente, urge pôr cobro à figura falaciosa do candidato a Primeiro-Ministro, criada em boa parte por efeito da ignorância nefasta da comunicação social: embora o Presidente da República no momento de convidar uma determinada personalidade para formar um Governo não possa deixar de ponderar os resultados eleitorais, a verdade é que no ordenamento jurídico português nada impõe que essa figura tenha forçosamente de ser o líder do partido mais votado.

Outrossim, sendo um Parlamento - e os governos por ele sancionados - mandatado para o exercício da sua actividade ao longo de uma legislatura de quatro anos, o mesmo não perde qualquer legitimidade pelo facto de, entrementes, em actos eleitorais realizados com finalidades distintas da escolha dos deputados da Nação, suceder conjunturalmente formar-se uma maioria política distinta daquela que existe nesse órgão de soberania. Supor o contrário seria cair num perigoso plebiscitarismo, o qual, para além de gerar uma instabilidade absolutamente insustentável em que apenas conseguiriam medrar perigosos demagogos, frustraria a consecução de qualquer política com resultados visíveis tão-só a médio ou longo prazo. Os resultados de eleições ocorridas a meio de legislaturas podem certamente servir para os analistas políticos extraírem ilações sobre a popularidade, ou não, das políticas levadas a cabo por uma determinada maioria política, mas não retiram a tal maioria qualquer legitimidade. Pensar diversamente seria perverter o sistema constitucional e impedir a avaliação global de uma actuação política em todas as suas componentes no momento adequado para o efeito, ou seja, o término da legislatura.

Finalmente, no caso concreto que o País acabou de viver, sem olvidar o que já escrevi no último parágrafo do meu anterior artigo sobre esta matéria, retira-se que o Presidente da República não quis comprometer-se em demasia com a liderança socialista, entretanto demissionária, de Ferro Rodrigues e ficar associado a vicissitudes futuras - eleitorais ou não - que esta pudesse sofrer. Está assim aberto o caminho para José Sócrates - apadrinhado por quem tem realmente influência na aldeia global, não é Buiça? - poder avançar para o cargo que tanto almeja; em paralelo, por acréscimo e porque Deus escreve direito por linhas tortas, ficamos livres do espectro terrífico de a extrema-esquerda de matriz albanesa alcandorar-se ao poder e apanharmos em cima com um PREC fora de tempo. Ainda não é desta vez que as mocas de Rio Maior vão deixar de gozar a sua merecida reforma…

quarta-feira, julho 07, 2004

Crise partidocrática - 2

Uma das características mais peculiares dos democratas é a de, sempre que podem e a ocasião se propicia, serem os primeiros a desrespeitar as regras mais basilares do funcionamento do sistema de que se dizem adeptos, desrespeito esse que aumenta numa grandeza directa e proporcional em relação às estridentes e exibicionistas afirmações públicas de fé democrática de que aqueles tanto costumam ufanar-se.

Vem isto a propósito da actual crise política que se vive em Portugal: pela minha parte, manifestando uma tremenda falta de simpatia por todos os seus protagonistas partidocráticos - a diferença entre uns e outros consiste no facto de os menos à esquerda pretenderem a destruição de Portugal a uma velocidade higiénica de 50 km/h, enquanto os mais à esquerda preferirem uma celeridade alucinada de 200 km/h -, a verdade é que o sistema tem as suas regras constitucionalmente definidas, as quais são sempre preferíveis à melhor das anarquias.

Assim, de acordo com as mesmas, através das eleições legislativas visa-se proceder à escolha dos deputados que durante o período de quatro anos que formam uma legislatura irão representar o povo português no Parlamento; não à nomeação de um qualquer candidato a primeiro-ministro, peculiar figura de todo desconhecida do nosso ordenamento jurídico. Ora, é ao Parlamento desta forma escolhido que incumbe aprovar o programa do governo que vier a ser constituído pela personalidade que o Presidente da República tiver convidado para o desempenho do cargo de Primeiro-Ministro, e isto tantas vezes quantas seja necessário durante a vigência da sua legislatura de quatro anos, enquanto o mesmo for capaz de gerar soluções políticas viáveis. Apenas se tal não suceder é que o Parlamento deve ser dissolvido antes de concluído o seu mandato quadrienal e só nessa circunstância convocadas eleições legislativas antecipadas; entender o contrário, isso sim, é patrocinar um verdadeiro golpe de Estado, ainda que sob a capa de uma pouco diáfana legalidade constitucional, com o único fito de acelerar e promover determinadas agendas políticas bem concretas.

Porém, acrescento que a solução final desta crise há-de ser encontrada longe do povo dito soberano, nos costumeiros conciliábulos mais ou menos discretos. Vamos pois aguardar, para ver se neste braço de ferro o mundialismo liberal pró-americano à Buiça se sobrepõe ao jacobinismo mais clássico de matriz afrancesada ou se sucede o contrário, ou seja, qual dos dois melhor influencia o Presidente da República.

sábado, julho 03, 2004

A questão identitária e o catolicismo tradicional

Tendo assistido à polémica que se gerou no blogue do Corcunda sobre a questão identitária, e conforme já havia prometido aos meus leitores, passo a analisar aquela na perspectiva que este espaço sufraga, isto é, a católica tradicional. Irei por pontos:

a) Não é possível alguém afirmar-se defensor da identidade nacional e simultaneamente ter a veleidade de erradicar dessa mesma matriz identitária o Catolicismo. Portugal fez-se com e pela religião católica, e foi grande enquanto soube respeitar e venerar os valores desta, levando-a a todos os cantos do mundo. Nenhum dos mentores de qualquer uma das principais correntes nacionalistas portuguesas jamais alvitrou o absurdo de idealizar Portugal sem o Catolicismo, chamasse-se ele Oliveira Salazar, António Sardinha ou Rolão Preto;

b) É deplorável que certos sectores nacionalistas, evidenciando leituras apressadas que vão desde Nietzsche a Alain de Benoist, passando por Houston Stewart Chamberlain, Alfred Rosenberg e até por Revilo Oliver, não hesitem em intitular o Cristianismo de "bolchevismo da antiguidade", importando para o nosso País questiúnculas que lhe são estranhas, e que foram em França um dos principais factores da cisão verificada entre a F.N. e o M.N.R., e, por outro lado, alinhem como aliados tácitos da extrema-esquerda na guerra cultural que esta move ao Cristianismo, compartilhando com aquela corrente ideológica a ideia aberrante de que este não faz parte da herança cultural europeia;

c) Os que falam em "bolchevismo da antiguidade" caem no mesmo erro dos defensores das heresias protestante e modernista: as Sagradas Escrituras só são susceptíveis de ser compreendidas e interpretadas à luz da tradição, ou seja, do magistério permanente, constante, ininterrupto e duas vezes bimilenar da Igreja e não fora dele. Qualquer percepção que se tenha a partir da leitura das Sagradas Escrituras que contradiga o ensinamento eclesial, pura e simplesmente, está errada;

d) A Igreja não só jamais defendeu o igualitarismo e o comunismo como até o condenou e condena formal e expressamente - Pio XI denominou-o de intrinsecamente perverso. Em termos cristãos, como explicava o grande Papa São Pio X, os homens só são iguais entre si nestes factos - todos são criados por Deus; todos foram redimidos e resgatados pelo seu sacrifício na Cruz; todos serão por Ele julgados no fim do mundo e por Ele premiados ou punidos em função da sua fé e obras realizadas; mas nada mais;

e) A Igreja não nega, não se opõe, nem condena as diferenças de condição existentes entre os homens e no seu ensino sustenta que estes são explicitamente desiguais no seu esforço, na sua vontade, na sua vocação e, como tal, na sua condição social e riqueza - a este propósito, ver a "Rerum Novarum", de Leão XIII;

f) A Igreja também sufraga a ideia, mediante a interpretação que faz do quarto mandamento do Decálogo, de que a pátria é um dos legítimos superiores do cristão, e que este se encontra obrigado a honrá-la. No seguimento desta doutrina, São Tomás de Aquino explica que tal pátria é uma extensão da família, e que os compatriotas do cristão são consequentemente também seus familiares, recaindo por isso sobre este último o dever de zelar pela salvaguarda e integridade daquela primeira - ver Suma Teológica, II - II, Questão 101, Artigo 1.

Todo este ensinamento é magistralmente resumido neste trecho da Encíclica "Summi Pontificatus", de 1939, da autoria do Papa Pio XII, que passo a citar:

"Não se deve recear que a consciência da fraternidade universal, fomentada pela doutrina cristã, e o sentimento que ela inspira estejam em contraste com o amor às tradições e glórias da própria pátria, ou impeçam que se promovam a prosperidade e os interesses legítimos, porquanto essa mesma doutrina ensina que existe uma ordem estabelecida por Deus no exercício da caridade, segundo a qual se deve amar mais intensamente e auxiliar de preferência os que estão a nós unidos com vínculos especiais. E o Divino Mestre deu também exemplo dessa preferência pela sua pátria, chorando sobre as ruínas da Cidade Santa. Mas o legítimo e justo amor à própria pátria não deve excluir a universalidade da caridade que faz considerar também aos outros a sua prosperidade, na luz pacificadora do amor";

g) Deste trecho de São Pio XII alcançam-se, de imediato, duas conclusões essenciais: 1ª) Num plano individual, por atentatória à dignidade fundamental do ser humano, a Igreja não pode deixar de condenar a segregação, a humilhação e a menorização de qualquer homem com base unicamente na sua raça, realidade cuja existência, porém, ela não nega; 2ª) Outrossim, se a Igreja condena a segregação racial, nem por isso tal faz dela, num plano colectivo, apologista da integração forçada, muito pelo contrário: o universalismo espiritual cristão, de que os portugueses foram exemplares praticantes ao longo da História, nada tem a ver com o internacionalismo igualitarista, crassamente materialista, de matriz jacobina e apátrida; nenhum cristão, para o ser, necessita de alinhar em utopias que pretendem reconstituir a unidade original da humanidade existente previamente ao desastre de Babel;

h) Desnecessário igualmente dizer que ninguém se torna anticristão por se opor às políticas de imigração sem controlo que o Ocidente actualmente sofre, as quais são defendidas pelos lóbis mundialistas com o fito de provocar a supra referida integração forçada e dissolver as pátrias, que os cristãos têm o dever de honrar, num magma cosmopolita. Amar o próximo como a nós mesmos é fazermos ao próximo aquilo que gostamos que nos façam; não é deixarmos o próximo fazer-nos aquilo que não gostamos ou que nunca lhe faríamos. Como remate final, acrescente-se ainda que, no seu "Comentário à Política de Aristóteles", São Tomás de Aquino indubitavelmente critica o que hoje chamaríamos de sociedade multicultural;

i) Sem prejuízo de tudo o que disse, recordo que o homem não está neste mundo para idolatrar a raça e a pátria, mas para adorar a Deus e salvar sua alma para toda a eternidade.

Sobre esta matéria, a título complementar, sugiro a leitura destes dois textos, ambos de orientação católica tradicional: o primeiro, do excelente sítio norte-americano "Seattle Catholic"; o segundo, do sítio da SSPX - África do Sul.

quinta-feira, julho 01, 2004

Crise partidocrática

A crise política dos últimos dias tem tido, pelo menos, a grande virtude de demonstrar à saciedade a pura nocividade do sistema partidocrático, mais do que todos os defeitos que a este possam ser assacados. Entre a ambição pessoal desmesurada de quem se olvidou dos compromissos que contraiu perante a Nação, a mesquinhez ressentida e ressabiada daqueles que jamais viram à sua frente outra coisa que não o próprio umbigo, e a irresponsabilidade de outros ainda que nunca hesitaram em colocar os seus mesquinhos e imediatos interesses políticos acima do bem-estar a médio e longo termo do País, é toda uma parafernália de criaturas abjectas em desfile que só pode provocar uma profunda repulsa a qualquer pessoa bem formada que se veja forçada a contemplar tão triste espectáculo, qual bacanal de percevejos numa enxerga podre, como diria o velho Guerra Junqueiro.

Portugal precisa de quem o sirva, e não de quem dele se serve; necessita de quem saiba que os superiores interesses nacionais precedem sempre o frio e cínico calculismo partidocrático; em suma, carece do regresso aos valores fundamentais que sempre orientaram o seu ser, sintetizados pela divisa Deus, Pátria, Rei!