terça-feira, julho 13, 2004

Inteligência e Vontade

A opinião é uma atitude que o sujeito toma diante do objeto sem que o objeto importe. Não se mede pelo objeto, não tem proporção com ele. Precisa do objeto para sair do sujeito e voltar ao sujeito. Ter razão importa sem que o objeto importe.

(…)

Podemos então localizar a ponta da raiz, o fibrilo nervoso onde mora o princípio de uma opinião. Eliminadas as outras partes do nosso interior, sobra aquela que é mais irritável, mais ferida, aquela que vive a esbarrar na limitação incómoda dos objectos: a vontade.

A opinião é segregada pela vontade; não vem do conhecimento mas de um apetite. O mecanismo da opinião pode ser descrito como uma interposição da vontade entre a inteligência e o objeto. A justa proporção com o objeto fica prejudicada, só podendo existir quando a inteligência está em livre confronto com o objeto, isto é, na contemplação.

Gostaria de tornar bem clara a imensa gravidade desse problema e a importância vital do restabelecimento, na estrutura da nossa pessoa, desse respeito pelo objeto, dessa abertura para fora pela qual tanto a inteligência como a vontade, a boa vontade, aspiram à objetividade. O grande desvio do pensamento moderno tem origem nessa inversão interior, pela qual a vontade se arroga um direito de conquista onde somente à inteligência cabe o primado. Todos nós, mais ou menos europeus, estamos impregnados de idealismo filosófico até à medula dos ossos, estamos convencidos que a nossa dignidade mais alta reside nesse subjetivismo obstinado que tenta reduzir todas as coisas do céu e da terra a meia dúzia de opiniões. Muita gente pensa que isso é grandeza e marca de caráter e que a personalidade humana se define por esse fechamento diante dos objetos e se engrandece por essa deformação interior. Diante dos objetos mais simples o homem liberal, que agasalha suas opiniões, que desconfia de tudo que não seja o morno recôncavo da sua interioridade, cai em guarda numa posição crispada; a vontade mete-se de permeio entre a porta dos sentidos e a inteligência, e como o seu caminho é mais curto, ou porque seja ela mais ágil, sua sugestão chega antes do conceito e gera o preconceito. A inteligência perde a liberdade e a vontade então convence o sujeito que ele é um livre pensador.

É nessa questão nevrálgica da liberdade que a vontade mais se excita, e, no diálogo interior, clama que lhe pertence exclusivamente a decisão nessa matéria. Como na vida exterior vive sendo ofendida, esbarrando, chocando-se, atritando-se, a vontade procura se desforrar e volta-se para dentro. Volta-se contra o próprio sujeito, enrola-se no cerne nobre da pessoa e morde a inteligência. A liberdade psicológica e voluntariosa, nascida no conflito com as objetividades, substitui a liberdade ontológica que tem raiz na adequação entre a inteligência e o ser. O primado da inteligência é usurpado, e então, em vez do reto juízo nasce a opinião.


Gustavo Corção - A Descoberta do Outro - Rio de Janeiro, 2ª Edição, 1945 - páginas 79 a 81

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