quarta-feira, julho 21, 2004

A Descoberta do Outro

Acabei de ler o livro "A Descoberta do Outro", de Gustavo Corção, de que aqui havia já deixado um extracto, numa edição antiga datada de 1945, que tive a felicidade de descobrir, via net, neste simpático sebo de Fortaleza. Sebos, assim são conhecidos, de modo peculiar, os alfarrabistas no outro lado do Atlântico… Embora exista uma edição recente da obra em questão disponível no mercado brasileiro, na medida em que nesta última, por iniciativa da respectiva editora - a Agir -, foram introduzidas algumas alterações arbitrárias ao texto originalmente escrito pelo seu autor, a mesma não se aconselha, devendo ser lida com a necessária parcimónia.
 
"A Descoberta do Outro", aparecida em 1944, é o primeiro livro de Gustavo Corção, no qual este narra a sua conversão ao Catolicismo. Conhecedor das obras-primas finais do mesmo - "Dois Amores, Duas Cidades" e o absolutamente fantástico "O Século do Nada" -, bem como dos magníficos artigos resultantes da sua colaboração com a
"Permanência", nos quais a crise modernista pós-conciliar foi devidamente escalpelizada e combatida, confesso que sentia uma certa relutância em conhecer o seu trabalho inicial, receoso que estava de que ele não tivesse a mesma qualidade de obras subsequentes. Graças a Deus, enganei-me.
 
Em "A Descoberta do Outro", Corção demonstra já em toda a plenitude o seu vigor literário e doutrinário, a mestria inconfundível que o fazia mesclar o melhor português com a mais magnífica das doutrinas. É certo que, aqui e acolá, ao longo da sua narrativa, ainda se notam algumas arestas modernistas que posteriormente seriam completamente limadas, ou seja, o elogio incondicional de Jacques Maritain ou a admiração manifestada pelo intelectual católico brasileiro, de tendências progressistas, Alceu Amoroso Lima: no que tange ao primeiro, Corção viria mais tarde a distinguir o bom Maritain - o de "Antimoderne", dos tempos de militância monárquica nacionalista na Action Française, de Charles Maurras - do mau Maritain, modernista assumido a partir de 1932, influenciado por Emmanuel Mounier, e autor de "Cristianismo e Democracia" e "Humanismo Integral"; no que concerne ao segundo, romperia com ele na altura do Concílio Vaticano II, abandonando o Centro Dom Vital para fundar o seu querido Centro Permanência. Porém, estes pequenos pormenores não afectam minimamente a qualidade global do livro, de que aqui deixo exactamente os últimos períodos, nos quais Gustavo Corção relata as impressões que lhe deixou o momento da recepção do escapulário de oblato beneditino, no Mosteiro de São Bento, no Rio de Janeiro:
 
"O rito cristão é realmente um teatro só para crianças; é preciso ser como as crianças para aceitar o sentido profundo das cenas muito simples e das palavras decoradas. A palavra decorada do ritual quer dizer palavra do coração, palavra gravada, guardada para ser depois pronunciada no diálogo da boa vontade. E é por isso que os postulantes, naquele dia, apresentaram-se diante do abade muito contentes, carregando palavras em seus corações e já sabendo de antemão as outras que ouviriam.
 
A cerimónia começa dizendo o padre mestre ao abade que ali estão alguns seculares que vieram bater à porta do mosteiro para pedir alguma coisa. Pergunta então o abade aos hóspedes o que pedem eles, e todos, com uma só boca, recitam o pedido de fraternidade na regra beneditina. Depois desses preliminares e já vestidos com o escapulário, tem lugar uma cena particularmente importante.
 
O leitor há de estar lembrado que em outros tempos andei em rodas marxistas e nietzschistas, hesitando entre a sociedade sem classes e a grande raça caucásica, não sabendo se deveria levantar a mão direita dura como um dardo, ou a esquerda com o punho fechado em sinal de revolta. Pois agora, diante do abade, que representava outro Pai, eu já não tive que hesitar porque levantei as duas mãos. E todos nós, os doze oblatos novos, levantamos as mãos como orantes antigas, cantando as palavras decoradas: - Suscipe me, Domine, secuundum eloquium tuum…
 
E aí está, leitor amigo, como acaba esta história, um pouco no gosto das novelas policiais, estando eu desarmado, inteiramente entregue, "hands up", como um prisioneiro de Deus".

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