sábado, março 10, 2012

Terceiro Domingo da Quaresma


O pior estado desta vida, e o mais infeliz, de todos, é o pecado. Mas se neste extremo de mal pode haver ainda outro mal maior, é o de pecado, e mudo. O mais desventurado homem de que Cristo nos quis deixar um temeroso exemplo, foi aquele da parábola das bodas, a quem o rei, atado de pés e mãos, mandou lançar para sempre no cárcere das trevas. O rei era Deus, o cárcere o infemo, e o homem foi o mais desventurado de todos os homens, porque no dia e no lugar em que todos se salvaram, só ele se condenou. E em que esteve a sua desgraça? Só em pecar? Não, porque muitos depois de pecar se salvaram. Pois em que esteve? Em emudecer depois de pecar. Estranhou-lhe o rei o descomedimento de se assentar à sua mesa, e em tal dia, com vestido indecente, e ele em vez de solicitar o perdão da sua culpa confessando-a, confirmou a sua condenação emudecendo: At ille obinutuit: E ele, diz o evangelista, emudeceu. Aqui esteve o remate da desgraça. Mais mofino em emudecer que em pecar, porque cometido o pecado tinha ainda o remédio da confissão, mas emudecida a confissão, nenhum remédio lhe ficava ao pecado. Pecar é enfermar mortalmente; pecar é emudecer, é cair na enfermidade, é renunciar o remédio. Pecar é fazer naufrágio o navegante; pecar e emudecer, é ir-se com o peso ao fundo, e não lançar mão da tábua em que se pode salvar. Pecar é apagarem-se as lâmpadas às virgens néscias; pecar e emudecer é apagar-se-lhes as lâmpadas e fechar-se-lhes as portas. O pecado tem muitas portas para entrar e uma só para sair, que é a confissão. Pecar é abrir as portas ao demónio para que entre à alma; pecar e emudecer, é abrir-lhe as portas para que entre, e cerrar-lhe a porta para que não possa sair. Isto é o que em alegoria comum temos hoje no Evangelho. Um homem endemoninhado e mudo. Endemoninhado, porque abriu o homem as portas ao pecado; mudo, porque fechou o demónio a porta à confissão.

E que fez Cristo neste caso? Maior caso ainda! Erat ejiciens daemonium. Não diz o evangelista que lançou Cristo o demónio fora, senão que o estava lançando. Achava Cristo repugnância, achava força, achava resistência, porque não há coisa que resista a Deus neste mundo senão um pecador mudo. Tantas vozes de Deus aos ouvidos, e o pecador mudo? Tantos raios e tantas luzes aos olhos, e o pecador mudo? Tantas razões ao entendimento, tantos motivos à vontade, tantos exemplos e tão desastrados e tão repetidos à memória, e o pecador mudo? Que fez aí fim Cristo? Aplicou a virtude de seu poder eficaz, bateu à porta; porque não bastou bater à porta, insistiu, apertou, venceu, saiu rendido o demónio, e falou o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus. Este foi o fim da batalha, glorioso para Cristo, venturoso para o homem, afrontoso para o demónio, maravilhoso para os circunstantes, e só para o nosso intento parece que menos próprio e menos airoso. Diz que primeiro saiu o demónio, e depois falou o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus. E nesta circunstância, parece que se encontra a ordem do milagre com a essência do mistério. Na confissão, primeiro fala o mudo, e depois sai o demónio; primeiro se confessa o pecador, e depois se absolve o pecado. Logo, se neste milagre se representa o mistério da confissão, primeiro havia de falar o mudo, e depois havia de sair o demónio. Antes não, e por isso mesmo, porque aqui não só se representa a confissão, senão a confissão perfeita, e a confissão perfeita não é aquela em que primeiro se confessa o pecado, e depois se perdoa, senão aquela em que primeiro se perdoa, e depois se confessa.

Resolveu-se o pródigo a tomar para casa do pai e confessar sua culpa, e como bom penitente dispôs e ordenou primeiro a sua confissão: Ibo ad patrem meum, et dicam ei: Pater peccavi in coelum, et coram te. Feita esta primeira diligência, pôs-se a caminho, e estando ainda muito longe: Cum adhuc longe esset, eis que subitamente se acha entre os braços do pai, apertando-o estreitamente neles, e chegando-o ao rosto com as maiores carícias: Accurrens cecidit super collum ejus, et osculatius est eum. Então se lançou o pródigo a seus pés e fez a sua confissão como a trazia prevenida: Et dixit ei filius: Pate; peccavi in coelum et coram te. Pois agora, filho pródigo? Não era isso o que vós tínheis ensaiado. Enfim temos a comédia turbada. O pai saiu cedo, o filho falou tarde. Perderam as figuras as deixas, erraram a história, trocaram o mistério. Esta história do pródigo não é a comédia ou o acto sacramental da confissão? Sim. Logo, primeiro havia o pródigo de lançar-se aos pés do pai e fazer o papel da sua confissão, como a trazia estudada, e depois havia o pai de lançar-lhe os braços, e restitui-lo à sua graça. Pois por que se troca toda a ordem, e primeiro lhe lança os braços o pai, e depois se confessa o filho? Porque representavam ambos não só o acto sacramental da confissão, senão da confissão perfeitíssima. Na confissão menos perfeita, primeiro se confessa o pecado, e depois se recebe a graça; na confissão perfeitíssima primeiro se recebe a graça, e depois se confessa o pecado. A confissão menos perfeita começa pelos pés de Deus, e acaba pelos braços; a confissão perfeitíssima começa pelos braços e acaba pelos pés, como aconteceu ao pródigo. A razão é clara, porque a confissão perfeitíssima é aquela em que o pecador vai aos pés de Deus verdadeiramente contrito e arrependido de seus pecados. Vai verdadeiramente contrito e arrependido? Logo já vai em graça, já vai perdoado, já vai absolto. E esta é a confissão que hoje temos no milagre do Evangelho. Confissão em que primeiro se recebe a graça e depois se confessa o pecado; confissão em que primeiro sai o demónio, e depois fala o mudo: Cum ejecisset daemonium, locutus est mutus.

Padre António Vieira, in “Sermão da Terceira Dominga da Quaresma”, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1655

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