terça-feira, agosto 05, 2008

O imperador da doutrina católica


Para assinalar a passagem do quarto centenário do nascimento do Padre António Vieira, a Imprensa Nacional iniciou a publicação de uma edição crítica completa dos "Sermões" do ilustre sacerdote da Companhia de Jesus, num total de quinze volumes a serem lançados até ao final de 2010.

Do que pudemos constatar da leitura do primeiro volume já editado, trata-se um excelente trabalho com o elevado nível de qualidade a que a Imprensa Nacional nos habitou e que possibilita um melhor conhecimento do pensamento doutrinário de Vieira, numa altura em que muitos o tentam abusivamente transformar num protomodernista, defensor do falso ecumenismo e do internacionalismo revolucionário.

Ora, a este propósito, é bem sintomática a parte final do texto com que D. José Policarpo, Cardeal-Patriarca de Lisboa, prefacia a presente edição (a única coisa menos boa desta), pretendendo alinhar Vieira com o malfazejo "espírito do Vaticano II". Porém, pregasse hoje algum sacerdote numa igreja sob jurisdição do Patriarcado como Vieira pregava no seu tempo e o Patriarca olissiponense mandá-lo-ia calar de imediato, por tal pregação ser completamente contrária àquele "espírito".

Na verdade, se nos "Sermões" Vieira é um incontestável mestre da língua portuguesa, nos mesmos ele é antes de mais, e acima de tudo, um imperador da autêntica doutrina tradicional católica! E onde mais poderia Vieira proclamar nos dias que correm o que proclamava no seu tempo, se não nos priorados da Fraternidade Sacerdotal de São Pio X?!

Vejamos:

"Para que fez Deus Portugal, e para que levantou no mundo esta Monarquia, senão para desfazer Ídolos, para converter idólatras, para desterrar idolatrias? Assi o fizemos, e fazemos, com glória singular do nome Cristão nas Ásias, nas Áfricas, nas Américas. Mas como se os mesmos Ídolos se vingaram de nós, nós derrubámos as suas estátuas, e eles pegaram-nos as suas cegueiras. Cegos, e com olhos abertos, como Ídolos: Oculos habent, e non videbunt. Cegos, e com olhos abertos, como o Povo de Israel: Populum caecum, et oculos habentem. Cegos, e com olhos abertos, como Saulo: Apertis oculis nihil videbat. E cegos finalmente, e com os olhos abertos, como os Escribas e Fariseus: Ut videntes caeci fiant" (Do "Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma", pregado em Lisboa, em 1669).

"Oh quem me dera ter agora neste auditório a todo o mudo! Quem me dera que me ouvira agora Espanha, que me ouvira França, que me ouvira Alemanha, que me ouvira a mesma Roma! Príncipes, Reis, Emperadores, Monarcas do mundo, vedes a ruína dos vossos reinos, vedes as aflições, e misérias dos vossos vassalos, vedes as violências, vedes as opressões, vedes os tributos, vedes as pobrezas, vedes as fomes, vedes as guerras, vedes as mortes, vedes os cativeiros, vedes a assolação de tudo? Ou vedes, ou não o vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Príncipes Eclesiásticos, grandes, maiores, supremos, e vós, ó Prelados que estais em seu lugar, vedes as calamidades universais, e particulares da Igreja, vedes os destroços da Fé, vedes o descaimento da Religião, vedes o desprezo das Leis Divinas, vedes a irreverência dos lugares sagrados, vedes o abuso dos costumes, vedes os pecados públicos, vedes os escândalos, vedes as simonias, vedes os sacrilégios, vedes a falta de doutrina sã, vedes a condenação, e perda de tantas almas dentro, e fora da Cristandade? Ou o vedes, ou o não vedes. Se o vedes, como o não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Ministros da República, da Justiça, da Guerra, do Estado, do Mar, da Terra, vedes as obrigações que se descarregam sobre o vosso cuidado, vedes o peso que carrega sobre vossas conciências, vedes as desatenções do governo, vedes as injustiças, vedes os roubos, vedes os descaminhos, vedes os enredos, vedes as dilações, vedes os subornos, vedes os respeitos, vedes as potências dos grandes, e as vexações dos pequenos, vedes as lágrimas dos pobres, os clamores, e gemidos de todos? Ou o vedes, ou o não vedes? Se o vedes, como não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Pais de família, que tendes casa, mulher, filhos, criados, vedes o desconcerto, e descaminho das vossas famílias, vedes a vaidade da mulher, vedes o pouco recolhimento das filhas, vedes a liberdade, e más companhias dos filhos, vedes a soltura, e descomedimento dos criados, vedes como vivem, vedes o que fazem, e o que se atrevem a fazer, fiados muitas vezes na vossa dissimulação, no vosso consentimento, e na sombra do vosso poder? Ou o vedes, ou o não vedes? Se o vedes, como não remediais? E se não o remediais, como o vedes? Estais cegos. Finalmente, homem Cristão, de qualquer estado, e de qualquer condição que sejas: vês a Fé, e o Carácter, que recebeste no Baptismo, vês a obrigação da Lei que professas, vês o estado em que vives há tantos anos, vês os encargos da tua conciência, vês as restituições que deves, vês a ocasião de que não te apartas, vês o perigo da tua alma, e de tua salvação, vês que estás actualmente em pecado mortal, vês que se te toma a morte nesse estado, que te condenas sem remédio; vês que se te condenas, hás-de arder no Inferno, enquanto Deus for Deus, e que hás-de carecer do mesmo Deus por toda a eternidade? Ou vemos tudo isto, Cristãos, ou não o vemos? Se o não vemos, como somos tão cegos? E se o vemos, como o não remediamos? Fazemos conta de o remediar algu hora, quando há-de ser esta hora? Ninguém haverá tão ímpio, tão bárbaro, tão blasfemo, que diga que não. Pois se o havemos de remediar algu hora, quando há-de ser esta hora? Na hora da morte? Na última velhice? Essa é a conta que lhe fizeram todos os que estão no Inferno, e lá estão, e lá estarão para sempre. E será bem que façamos nós também a mesma conta, e que nos vamos após eles? Não, não, não queiramos tanto mal a nossa alma. Pois se algum dia há-de ser, se algum dia havemos de abrir os olhos, se algum dia nos havemos de resolver, porque não será neste dia?

Ah Senhor, que não quero persuadir aos homens, nem a mi (pois somos tão cegos), a Vós me quero tornar. Não olheis, Senhor, para nossas cegueiras, lembrai-Vos dos Vossos olhos, lembrai-Vos do que eles fizeram hoje em Jerusalém. Ao menos um cego saia hoje daqui alumiado. Ponde em nós esses olhos piedosos; ponde em nós esses olhos misericordiosos; ponde em nós esses olhos Omnipotentes. Penetrai, e abrandai com eles a dureza destes corações: rasgai, e alumiai a cegueira destes olhos; para que vejam o estado miserável de suas almas; para que vejam quanto lhes merece essa Cruz, e essas Chagas; e para que lançando-nos todos a Vossos pés, como hoje fez o cego, arrependidos com ua firmíssima resolução de nossos pecados, nos façamos dignos de ser alumiados com Vossa Graça, e Vos ver eternamente na Glória"
(Do mesmo "Sermão da Quinta Quarta-Feira da Quaresma").

"Escreveste em ambos os Testamentos a necessidade, e merecimento das boas obras: e virá um Lutero, que não só negue serem necessárias as boas obras para a salvação, mas se atreva a dizer que todas as boas obras são pecado (e pudera acrecentar), pecado, em que nunca pecou Lutero. Assi o ensinaram ele, e Calvino (aqueles dous monstros mais que infernais do nosso século) para tirar do mundo a oração, o jejum, a esmola, a castidade, a penitência, os sufrágios, os Sacramentos: pregando contra o que Cristo pregou, e escrevendo contra o que duas vezes escreveu; e formando novas tentações contra o mesmo Cristo das mesmas Escrituras, com que Ele Se defendeu das tentações, para que se veja quanto se adiantaram os homens nas artes de tentar, e quanto atrás deixaram ao mesmo Demónio" (Do "Sermão no Sábado Quarto da Quaresma", pregado em Lisboa, em 1652).

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