segunda-feira, dezembro 10, 2007

"Spe Salvi", a nova encíclica papal


Acabei de ler a nova encíclica escrita pelo Papa Bento XVI, "Spe Salvi": trata-se de um documento que está muito distante do estilo lacónico, incisivo e directo a que os Papas sociais pré-conciliares nos habituaram, dado ser bastante heterodoxo quanto à forma como se encontra redigido, porém absolutamente ortodoxo quanto à mensagem final que transmite.

Desta, saliento primeiramente a crítica que o Santo Padre faz da idade moderna e subsequentemente do Cristianismo moderno, afirmando a necessidade que este último tem de retornar às suas raízes para se reencontrar, o que não pode deixar de significar um regresso à tradição. Do ponto 22 da encíclica:

É preciso que, na autocrítica da idade moderna, conflua também uma autocrítica do cristianismo moderno, que deve aprender sempre de novo a compreender-se a si mesmo a partir das próprias raízes.

Igualmente merecedor de grande realce, por colidir directa e frontalmente com o espírito do V-2 e a hermenêutica de ruptura a ele associada, é o ensinamento de Sua Santidade de que o homem dito moderno, ao contrário do que se chegou a supor mesmo dentro da Igreja, não é ontológica e axiologicamente distinto dos homens de outras eras históricas, permanecendo antes um ser decaído, atingido pelo pecado original e eventualmente propenso à prática do mal. Do ponto 21, onde de permeio o totalitarismo comunista é explicitamente condenado:

Com a sua vitória, porém, tornou-se evidente também o erro fundamental de Marx. Ele indicou com exactidão o modo como realizar o derrubamento. Mas, não nos disse, como as coisas deveriam proceder depois. Ele supunha simplesmente que, com a expropriação da classe dominante, a queda do poder político e a socialização dos meios de produção, ter-se-ia realizado a Nova Jerusalém. Com efeito, então ficariam anuladas todas as contradições; o homem e o mundo haveriam finalmente de ver claro em si próprios. Então tudo poderia proceder espontaneamente pelo recto caminho, porque tudo pertenceria a todos e todos haviam de querer o melhor um para o outro. Assim, depois de cumprida a revolução, Lenin deu-se conta de que, nos escritos do mestre, não se achava qualquer indicação sobre o modo como proceder. É verdade que ele tinha falado da fase intermédia da ditadura do proletariado como de uma necessidade que, porém, num segundo momento ela mesma se demonstraria caduca. Esta «fase intermédia» conhecêmo-la muito bem e sabemos também como depois evoluiu, não dando à luz o mundo sadio, mas deixando atrás de si uma destruição desoladora. Marx não falhou só ao deixar de idealizar os ordenamentos necessários para o mundo novo; com efeito, já não deveria haver mais necessidade deles. O facto de não dizer nada sobre isso é lógica consequência da sua perspectiva. O seu erro situa-se numa profundidade maior. Ele esqueceu que o homem permanece sempre homem. Esqueceu o homem e a sua liberdade. Esqueceu que a liberdade permanece sempre liberdade, inclusive para o mal. Pensava que, uma vez colocada em ordem a economia, tudo se arranjaria. O seu verdadeiro erro é o materialismo: de facto, o homem não é só o produto de condições económicas nem se pode curá-lo apenas do exterior criando condições económicas favoráveis.

Mas notável, acima de tudo, é o tema de fundo que anima toda a "Spe Salvi": de forma de todo inédita na Igreja pós-conciliar, mas totalmente tradicional, o Papa Bento XVI recorda ao homem de hoje o seu destino último, afinal o destino do homem de sempre: morte, julgamento, céu (a esperança de todos os cristãos) ou inferno. Dos pontos 45, 46, 47 e 48:

Com a morte, a opção de vida feita pelo homem torna-se definitiva; esta sua vida está diante do Juiz. A sua opção, que tomou forma ao longo de toda a vida, pode ter caracteres diversos. Pode haver pessoas que destruíram totalmente em si próprias o desejo da verdade e a disponibilidade para o amor; pessoas nas quais tudo se tornou mentira; pessoas que viveram para o ódio e espezinharam o amor em si mesmas. Trata-se de uma perspectiva terrível, mas algumas figuras da nossa mesma história deixam entrever, de forma assustadora, perfis deste género. Em tais indivíduos, não haveria nada de remediável e a destruição do bem seria irrevogável: é já isto que se indica com a palavra inferno.

(…)

Mas, segundo a nossa experiência, nem um nem outro são o caso normal da existência humana. Na maioria dos homens – como podemos supor – perdura no mais profundo da sua essência uma derradeira abertura interior para a verdade, para o amor, para Deus. Nas opções concretas da vida, porém, aquela é sepultada sob repetidos compromissos com o mal: muita sujeira cobre a pureza, da qual, contudo, permanece a sede e que, apesar de tudo, ressurge sempre de toda a abjecção e continua presente na alma. O que acontece a tais indivíduos quando comparecem diante do Juiz? Será que todas as coisas imundas que acumularam na sua vida se tornarão de repente irrelevantes? Ou acontecerá algo de diverso?

(…)

O encontro com Ele é o acto decisivo do Juízo. Ante o seu olhar, funde-se toda a falsidade. É o encontro com Ele que, queimando-nos, nos transforma e liberta para nos tornar verdadeiramente nós mesmos. As coisas edificadas durante a vida podem então revelar-se palha seca, pura fanfarronice e desmoronar-se. Porém, na dor deste encontro, em que o impuro e o nocivo do nosso ser se tornam evidentes, está a salvação. O seu olhar, o toque do seu coração cura-nos através de uma transformação certamente dolorosa «como pelo fogo». Contudo, é uma dor feliz, em que o poder santo do seu amor nos penetra como chama, consentindo-nos no final sermos totalmente nós mesmos e, por isso mesmo totalmente de Deus. Deste modo, torna-se evidente também a compenetração entre justiça e graça: o nosso modo de viver não é irrelevante, mas a nossa sujeira não nos mancha para sempre, se ao menos continuámos inclinados para Cristo, para a verdade e para o amor. (…) O Juízo de Deus é esperança quer porque é justiça, quer porque é graça. Se fosse somente graça que torna irrelevante tudo o que é terreno, Deus ficar-nos-ia devedor da resposta à pergunta acerca da justiça – pergunta que se nos apresenta decisiva diante da história e do mesmo Deus. E, se fosse pura justiça, o Juízo em definitivo poderia ser para todos nós só motivo de temor. A encarnação de Deus em Cristo uniu de tal modo um à outra, o juízo à graça, que a justiça ficou estabelecida com firmeza: todos nós cuidamos da nossa salvação «com temor e tremor» (Fil 2,12). Apesar de tudo, a graça permite-nos a todos nós esperar e caminhar cheios de confiança ao encontro do Juiz que conhecemos como nosso «advogado», parakletos (cf. 1 Jo 2,1).

(…) nenhum homem é uma mônada fechada em si mesma. As nossas vidas estão em profunda comunhão entre si; através de numerosas interacções, estão concatenadas uma com a outra. Ninguém vive só. Ninguém peca sozinho. Ninguém se salva sozinho. Continuamente entra na minha existência a vida dos outros: naquilo que penso, digo, faço e realizo. E, vice-versa, a minha vida entra na dos outros: tanto para o mal como para o bem. Deste modo, a minha intercessão pelo outro não é de forma alguma uma coisa que lhe é estranha, uma coisa exterior, nem mesmo após a morte. Na trama do ser, o meu agradecimento a ele, a minha oração por ele pode significar uma pequena etapa da sua purificação. E, para isso, não é preciso converter o tempo terreno no tempo de Deus: na comunhão das almas fica superado o simples tempo terreno. Nunca é tarde demais para tocar o coração do outro, nem é jamais inútil. Assim se esclarece melhor um elemento importante do conceito cristão de esperança. A nossa esperança é sempre essencialmente também esperança para os outros; só assim é verdadeiramente esperança também para mim. Como cristãos, não basta perguntarmo-nos: como posso salvar-me a mim mesmo? Deveremos antes perguntar-nos: o que posso fazer a fim de que os outros sejam salvos e nasça também para eles a estrela da esperança? Então terei feito também o máximo pela minha salvação pessoal.

Por todo o exposto, compartilho a opinião dos nossos amigos do "Rorate-Caeli", que, a propósito de um artigo escrito sobre a "Spe Salvi" pelo reputado jornalista católico italiano António Socci, chamam com inteira propriedade a tal encíclica a anti-"Gaudim et Spes", por contraponto ao falso optimismo progressista da constituição pastoral aprovada pelo V-2.

0 comentários: