segunda-feira, novembro 20, 2006

O Papa Bento XVI e a tradição - 7


Com respeito à liberalização da Missa tradicional de rito latino-gregoriano que o Papa Bento XVI pretende concretizar, e desde que a questão chegou às páginas da imprensa generalista, constato que a mesma tem vindo a ser sistematicamente apresentada como uma contraposição da "Missa em latim" face à "Missa em vernáculo", o que é uma forma de todo em todo errada de a encarar, num equívoco decorrente não só da ignorância de muitos jornalistas sobre a matéria, mas também da má fé de muitos modernistas e progressistas, mesmo ao nível episcopal.

A verdade é que o latim nunca deixou de ser a língua litúrgica da Igreja do Ocidente, mesmo depois das infelizes reformas instituídas pelo Concílio Vaticano II. Efectivamente, prescreve a Constituição Sobre a Sagrada Liturgia, aprovada por tal concílio (os destaques são meus):

A língua litúrgica: traduções

36. § 1. Deve conservar-se o uso do latim nos ritos latinos, salvo o direito particular.

§ 2. Dado, porém, que não raramente o uso da língua vulgar pode revestir-se de grande utilidade para o povo, quer na administração dos sacramentos, quer em outras partes da Liturgia, poderá conceder-se à língua vernácula lugar mais amplo, especialmente nas leituras e admonições, em algumas orações e cantos, segundo as normas estabelecidas para cada caso nos capítulos seguintes.

§ 3. Observando estas normas, pertence à competente autoridade eclesiástica territorial, a que se refere o artigo 22 § 2, consultados, se for o caso, os Bispos das regiões limítrofes da mesma língua, decidir acerca do uso e extensão da língua vernácula. Tais decisões deverão ser aprovadas ou confirmadas pela Sé Apostólica.

§ 4. A tradução do texto latino em língua vulgar para uso na Liturgia, deve ser aprovada pela autoridade eclesiástica territorial competente, acima mencionada.

(…)

Língua

54. À língua vernácula pode dar-se, nas missas celebradas com o povo, um lugar conveniente, sobretudo nas leituras e na «oração comum» e, segundo as diversas circunstâncias dos lugares, nas partes que pertencem ao povo, conforme o estabelecido no art. 36 desta Constituição.

Tomem-se providências para que os fiéis possam rezar ou cantar, mesmo em latim, as partes do Ordinário da missa que lhes competem.

Se algures parecer oportuno um uso mais amplo do vernáculo na missa, observe-se o que fica determinado no art. 40 desta Constituição.

Por seu turno, o Cânone 928 do Código de Direito Canónico de 1983 prescreve:

Realize-se a celebração eucarística na língua latina ou em outra língua, contanto que os textos litúrgicos estejam legitimamente aprovados.

Assim, o que deve ser contraposto não é o latim ao vernáculo, mas o rito tradicional latino-gregoriano, tridentino ou de São Pio V ao rito reformado de Paulo VI, ou seja, como repetidas vezes tenho afirmado, um rito que enfatiza em pleno as todas verdades fundamentais da fé católica sobre a Missa a um outro que, cedendo fortemente à heresia protestante, minimiza e obnubila essa verdades. É certo que a utilização da língua latina na liturgia tradicional da Igreja do Ocidente não é despicienda, já que o desenvolvimento orgânico desta última processou-se inteiramente sob o influxo de tal língua, motivo por que a Igreja não abandonou a sua utilização quando a mesma caiu em desuso na vida quotidiana, visando dessa forma salvaguardar a unidade do culto e preservá-lo das corrupções provocadas pelo emprego do vernáculo; porém, não é o latim cerne desta questão dos ritos litúrgicos tradicional ou reformado, já que a mesma não é meramente linguística, mas eminentemente doutrinária. Em suma, o rito paulino é sempre deficiente, ainda que oficiado na língua latina.

Por outro lado, e no último mês, multiplicaram-se os actos de contestação à legítima pretensão do Santo Padre, totalmente conforme à tradição, de libertar a Missa de rito latino-gregoriano dos entraves que a tolhem presentemente. Neste aspecto, pela negativa e com grande notoriedade, destacou-se parte do episcopado e clero francês, em estado de autêntica de rebelião galicana e cisma prático contra Roma. Em 25 de Outubro passado, através de um comunicado tornado público em Besançon, dez bispos (Monsenhores André La Crampe, Arcebispo de Besançon; Claude Schockert, Bispo de Belfort-Montbéliard; Jean-Louis Papin, Bispo de Nancy e Toul; Jean Le Grez, Bispo Saint-Dié; François Maupu, Bispo de Verdun; Joseph Dore, Administrador Apostólico de Estrasburgo; Christian Kratz, e Jean-Pierre Grallet, Bispos Auxiliares de Estrasburgo; e Pierre Raffin, Bispo de Metz), acompanhados por trinta sacerdotes, insubordinaram-se publicamente contra autoridade do Papa, arguindo com notória desonestidade que Bento XVI está a pôr em causa o Concílio Vaticano II e com evidente má fé que a plena restauração da Missa tradicional de rito latino-gregoriano, ao introduzir o bi-ritualismo na Igreja, provocará a desunião entre os fiéis católicos.

No que concerne ao Concílio Vaticano II, adeptos que são da hermenêutica da ruptura condenada pelo Santo Padre na sua célebre alocução de 22 de Dezembro de 2005, e supondo-se ainda nos tempos revolucionários do desastroso pontificado de Paulo VI, os bispos franceses parecem não alcançar que o Concílio Vaticano II tem natureza meramente pastoral, que não aboliu os restantes vinte Concílios da Igreja (todos eles dogmáticos e infalíveis) - em especial, o de Trento e o Vaticano I -, e que por estas razões não pode o Vaticano II jamais deixar de ser interpretado à luz da tradição da Igreja, ou seja, da hermenêutica da continuidade que Bento XVI pretende impor definitivamente.

No que ao tange ao problema do bi-ritualismo, os bispos franceses, porque não são ignorantes, faltam dolosamente à verdade.

Em termos formais, a unidade entre os católicos nunca se estabeleceu no plano ritual, mas sim no da adesão total e completa ao corpo de verdades de fé e moral divinamente reveladas de que a Igreja Católica chefiada pelo Bispo de Roma é e será fiel depositária até ao fim do mundo. Mesmo sem considerar os ritos católicos orientais (bizantino, arménio, antioqueno, alexandrino e caldeu), na Igreja do Ocidente convivem há largos séculos os ritos latino-gregoriano, ambrosiano (de Milão), hispano-moçárabe (de Toledo e Salamanca) e bracarense (de Braga), para além dos ritos próprios das ordens religiosas cartuxa, carmelita e dominicana. Sete ritos e invocam os bispos franceses os perigos de um hipotético bi-ritualismo…

Em termos práticos, é absurdo os bispos franceses, ou quaisquer outros defensores do rito paulino, invocarem em apoio deste uma pretensa unidade do culto católico, já que tal rito, através da discricionariedade que consente aos sacerdotes que o oficiam mesmo ao nível das orações eucarísticas, bem como da abertura que manifesta para com a inculturação (a adaptação da liturgia às práticas culturais dos diferentes povos, especialmente nas zonas de missão), implodiu totalmente com toda e qualquer unidade de culto litúrgico que a predominância do rito latino-gregoriano na Igreja do Ocidente havia anteriormente possibilitado "de facto".

Sobre esta matéria, aconselho outrossim a leituras dos seguintes textos:

- Todos os artigos que Brian Mershon tem publicado no "Renew America";

- The Mass of Saint Pius V: The French Bishops Raise a Shout with the Pope, de Sandro Magister, no "Chiesa";

- The Road to Restoration, do padre Ignacio Barreiro, no "Free Republic".

JSarto

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