sábado, junho 11, 2005

Reflexão a propósito do Dia de Portugal

Extraordinário trecho de Mestre António Sardinha, retirado do seu artigo "Mais Longe Ainda!", datado de 1923, o qual integra a colectânea de sua autoria "A Prol do Comum…", e que constitui uma oportuníssima reflexão para os tempos que vamos vivendo:

"Alguma coisa cheira a podre no reino da Dinamarca!" - monologava o personagem célebre de Shakespeare. Pois a podre cheira também tudo no antigo reino de Portugal! Assistimos entre nós a imprevistos e repugnantes espectáculos! Um rei no desterro, em manifesta falsificação do que representa o papel moralizador da Nobreza, concede títulos, como o Banco de Portugal fabrica notas, às mais inesperadas improvisações do "carnet-mondain". Das nossas Universidades os catedráticos deslocam-se, num deplorável histrionismo, para serventuários dos financeiros que lhes alugam o nome e a pretensa categoria científica. Os padres desobedecem aos seus legítimos Pastores, para se matricularem nas fileiras do Constitucionalismo putrefacto mas desgraçadamente insepulto. Chusmas e chusmas de insexualizados da literatura ressuscitam, como motivo de êxito estrondoso, uma Sodoma de cenografia imbecil, sem a hediondez majestosa da outra que ficou ardendo nos versículos brônzeos da Bíblia. E, atinando, por fim, com o segredo da sua consolidação, a República assenta à mesa, em que se está devorando a Riqueza Nacional, conservadores e jacobinos, reconciliados nos bastidores das Companhias e dos bancos sobre esse suculento festim de Trimalcião.

Tal é, ao declinar do Ano da Graça de 1923, a fisionomia horripilante de Portugal! Cianose infame que oculta o rosto venerando da Pátria, apliquemos-lhe como impreterível intervenção cirúrgica o radicalismo intemerato da nossa doutrina. Só Jacques Maritain formula concisamente o programa que nos cabe executar. "Il importe d'integrer l'immense materiel de vie contenu dans le monde moderne, mais il convient de haïr le monde moderne pris dans ce qu'il regarde comme sa gloire propre et distinctive: l'independance à l'égard de Dieu. Nous haïssons donc l'iniquité révolutionaire-bourgeoise qui enveloppe et vicie aujourd'hui la civilisation, comme nous haïssons l'iniquité revolutionaire-prolétairienne qui veut l'anéantir. C'est pour Dieu, ce n'est pas pour la société moderne qui nous voulons travailler. S'il ne s'agissait que de defendre les coffres-forts du Comité des Forges, ou la Rèpublique de la Maçonnerie, ou la Societé des Nations, ou la culture laïque et kantienne... ou la "religion" qui ne croit pas, et qui n'aime pas, et qui rassure les gens riches, qui donc voudrait lever le petit doigt?" Também nós não levantaríamos nem o dedo mínimo, se salvar Portugal fosse salvar o conúbio apertado de plutocratas e arrivistas em que para nós se resumem, à luz da perfeita justiça, as "esquerdas" e as "direitas"! Desdobrem-se as asas da nossa aspiração! Mais longe, muito mais longe ainda! E que a ânsia em que a alma se nos dilata não se deixe nunca sucumbir diante da vastidão incomensurável dos caminhos a percorrer!"

JSarto

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