quinta-feira, maio 17, 2012

Dia de Ascensão


Caso notável é, e sobre toda a admiração admirável, que naquele monte, e naquela hora, em que se representou a tragédia da mais lastimosa despedida, se não visse uma lágrima, e que o amor celebrasse as exéquias, à última vista de todo seu bem, com os olhos abertos e enxutos. Não há palavra que mais lastime e magoe o coração na despedida dos que se amam que um nunca mais. Se a despedida é para se tornarem a ver, o apartamento é sofrível; mas apartar-se de mim quem amo mais que a mim, para nunca mais o ver, este não ver mais é a maior dor dos olhos, e a que os desfecha e desfaz em rios de lágrimas. Quando S. Paulo se despediu dos efésios, declarando-lhes que aquela seria a última vez que se veriam, diz o texto sagrado que entre todos se levantou um pranto desfeito: Magnus autem fletus factus est omnium - e que a principal causa da sua dor era porque nunca mais o haviam de ver: Dolentes maxime in verbo, quod dixerat, quoniam amplius faciem ejus non essent visuri. Pois, se esta consideração, ou desengano, de que não haviam de ver mais a S. Paulo, era a causa da maior dor de seus discípulos, e de que todos chorassem em pranto desfeito, sem haver nem um só que pudesse reprimir as lágrimas naquela última despedida, como nesta de Cristo se não viu uma só lágrima em todos os seus discípulos, que o amavam sem comparação tanto mais que a S. Paulo os seus? A razão é a que se tira do mesmo texto: Cumque intuerentur in caelum euntem illum. Não se viu nos discípulos de Cristo uma lágrima, senão todos com os olhos enxutos, porque olhavam para ele e para o céu, aonde subia e não para si, nem para a terra, onde os deixava. A nuvem lho tirou dos olhos, mas aos mesmos olhos, que nela, como em carro triunfal, o viam subir ao céu, para se assentar à destra do Padre no trono da sua glória, esse mesmo céu, esse mesmo trono, e essa mesma glória, lhes suspendia em lágrimas, para que, trocadas em júbilos de alegria, não chorassem o que perdiam, mas só se lembrassem e festejassem o que ele ia lograr. Daqui se segue e vê claramente, que, quando os anjos vieram consolar os apóstolos, não acertaram com os motivos da verdadeira consolação que só podiam ter naquele caso. Que disseram os anjos aos apóstolos? Estranharam-lhes estar olhando para o céu: Quid statis aspicientes in caelum? E isto que lhes estranharam é o que lhes haviam de persuadir, porque, se o verem que se ia Cristo os podia entristecer, só o olharem para onde ia os podia alegrar.

Assim o confirmou expressamente o mesmo Cristo, que só o seu entendimento podia emendar e ensinar o dos anjos. Tendo anunciado o Senhor depois da última ceia aos discípulos que se havia de partir deste mundo, e vendo-os tão tristes com aquela não esperada nova, como ela merecia, estranhou-lhes a tristeza com estas palavras: Vado ad eum qui misit me, et nemo ex vobis interrogat me: Quo vadis? Sed quia haec locutus sum vobis, tristitia implevit cor vestrum: Por que vos disse, discípulos meus, que me hei-de ir, vejo-vos tristes, não só no rosto, senão no coração, e nenhum de vós me pergunta para onde vou: Et nemo ex vobis interrogat me: Quo vadis? Oh! divinas palavras: Nemo ex vobis: nenhum de vós - diz - porque entre os discípulos uns eram mais entendidos, outros mais rudes, e nem os rudes, nem os entendidos alcançavam a verdadeira razão com que se haviam de consolar e alegrar naquela despedida, porque todos reparavam em quem se ia, e nenhum considerava para onde ia. Se vos entristece o vadam: porque me vou, perguntai-me quo vadis: para onde vou, e logo vos alegrareis. Esta foi a lição do último Mestre quando anunciou aos discípulos a sua ausência, e, porque eles a observaram no dia da partida, por isso hoje se não viram no Olivete lágrimas, nem uma só lágrima: Cum que intuerentur in caelum euntem illum. O euntem illum lhes podia provocar as lágrimas, porque se ia; mas, como olhavam juntamente para onde ia: Cum que intuerentur in caelum- o para onde lhes suspendeu as lágrimas, de maneira que nem uma só se chorou onde eles ficavam.

A razão desta filosofia, tirada das entranhas do verdadeiro e fino amor, só podia ser do mesmo Mestre divino, e assim foi. Estranhando-lhes o Senhor aos discípulos a tristeza que acabamos de dizer e eles não acabavam de arrancar do coração, disse-lhes assim: Si diligeretis me, gauderetis utique, quia vado ad Patrem. Ah! discípulos meus, que vejo que me não amais! Se vós me amáreis, vós vos alegraríeis muito, porque vou para meu Padre. Antes de chegarmos ao Padre reparemos no quia vado. Se Cristo vira aos discípulos alegres em sua despedida, e lhes dissera: Bem parece que me não amais, pois vos alegrais quando me parto - esta é a consequência que dos olhos enxutos em semelhantes ocasiões costuma colher o juízo humano, ainda sem outros sinais de alegria. Mas, vendo os discípulos tristes, dizer-lhes o Senhor: Bem se vê que me não amais, pois vos entristeceis quando me vou? Sim, porque só consideravam quem se ia, e não para onde: quem se ia - quia vado, e não para onde - ad Patrem. Cristo, Senhor nosso, posto que enquanto Deus era igual ao Padre, enquanto homem era menor, como ele mesmo disse: Quia Pater major me est. E como o Senhor enquanto homem se ia assentar à destra do Padre, entristecerem-se os discípulos com a sua ausência, considerando a perda e orfandade em que ficavam, era efeito do amor-próprio com que se amavam a si; porém, alegrarem-se na mesma ausência, considerando a nova glória e majestade de seu Mestre e Senhor, era afecto de amor verdadeiro e fino, com que o amavam a ele. Por isso a tristeza e lágrimas que chorassem naquela ocasião eram ofensa do amor, e a alegria e lágrimas que não chorassem, fineza.

Padre António Vieira, in “Sermão da Ascensão de Cristo Senhor Nosso”, pregado em Lisboa, na Paroquial de São Julião, com o Santíssimo exposto.



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