New Parthenon, 26 de Outubro.
Pode negar-se a existência dos deuses, mas não pode negar-se a existência das religiões. Se são tantas e conseguiram sobreviver durante tantos séculos, quer dizer que correspondem a uma necessidade profunda da alma humana. Mesmo nos países mais inteligentes e civilizados, a maior parte da população pertence a uma igreja: é mister, pois, que eu também escolha uma.
Mas a eleição é terrivelmente difícil. Vivo, por via da regra, em países cristãos e a minha religião deveria ser o Cristianismo. Mas confesso que o Cristianismo, pelo pouco que dele conheço, me assusta. Estou disposto a reconhecer que é a mais perfeita e a mais sublime das religiões, mas, não obstante, contradiz e condena todos os meus mais profundos instintos. Detesto os homens e o Cristianismo impõe-me que os ame; a muito custo suporto os amigos, e o Cristianismo obriga-me a abraçar os inimigos; sou um dos homens mais ricos da terra, e o Cristianismo ensina-me o desprezo e a renúncia às riquezas; sinto a inclinação de gozar a crueldade, e o Cristianismo impõe-me a doçura e convida-me a prantear o martírio de um Justiçado.
Devo, pois, com grande sentimento, renunciar a fazer-me cristão. Do contrário, seria um cristão rebelde e hipócrita. O Cristianismo é muito elevado para um ser da minha espécie.
Felizmente, não faltam religiões que concordem melhor com a minha natureza. Mas não é fácil escolher uma, antes de a conhecer praticamente. Por isso decidi, há tempos, recorrer ao método experimental. Numa clareira do meu imenso parque, criei, para meu uso pessoal, uma Avenida dos Deuses, isto é, duas filas de templos das maiores religiões do mundo, servidos por sacerdotes autênticos trazidos do país de origem.
Há, em primeiro lugar, um templo hindu, dividido em três partes - átrio, santuário e cela - de acordo com as melhores regras. As divindades eleitas por mim - a deusa Kail e Siva, o destruidor - são servidas por um brâmane verdadeiro, assistido por um purôhita ou capelão e por um grupo de bailarinas sagradas (bayadeiras). Ali se celebram os cinco sacrifícios diários (sandhva) e, de vez em quando, as festas da deusa Kali, em honra de quem uma cabra é degolada.
A poucos passos, eleva-se o templo budista, disposto segundo o rito chinês. É um grande edifício guardado por monstros, à entrada. Ao fundo há uma estátua de Maitreya, futura encarnação do Buda, e, ao centro, a de Sakyamuni, isto é, do Buda histórico, entre os seus discípulos predilectos: Ananda e Kasyapa. Dois monges que vieram do Che Kiang, atendem o culto que, de resto, é muito simples.
Defronte, está o templo de Zeus, de mármore, estilo dórico. De facto, a religião pagã está morta, mas tive a fortuna de encontrar, no Sul de França, um discípulo retardatário daquele Gabriel Auclerc, que, com o nome de Quintus Nantius, quis ressuscitar o paganismo no tempo da Revolução Francesa. É um velho de florida barba, muito estudioso e admirador de Juliano o Apóstata, e reconstruiu como pôde a tradição dos sacerdotes flamínios. De quando em quando, pede-lhe que lhe conceda uma vaca ou um toiro para os sacrifícios e contenta-se, à falta de um genuíno vitimário, com um dos meus cow-boys.
Ao lado, encontra-se o templo sintoista (miya), quadrado, de acordo com a tradição japonesa, e construído com madeiras sagradas. No interior há apenas o espelho de prata, símbolo do Sol, e o famoso shintai, pedra redonda na qual deve transferir-se o mitama, isto é, a alma de Deus. Dois Kannuski estão ao serviço do templo, mas quase nunca podem realizar as procissões do Shintai, por falta de fiéis.
Quis também que não faltasse um templo zaratustriano. É o mais simples de todos: um recinto de pedra, onde o sacerdote parsi - que procurei em Bombaim - mantém sempre o fogo sagrado, atirando-lhe, cinco vezes por dia, madeira de sândalo. Depois das preces, o parsi toma um pouco daquela cinza e leva-a à fronte, e nada mais.
Do outro lado, há uma minúscula mesquita muçulmana, do mais puro estilo árabe do século X, com o mihrad de frente para Meca. Um imame e um muezim, procedentes de Marrocos, repetem todos os dias as orações obrigatórias.
E, finalmente, há uma minúscula sinagoga, imitação, em pequemo, da de Amesterdão, onde um Rabino romeno, mas da tribo de Levy, procede, em companhia de um bazzan de origem ucraniana, às cerimónias indispensáveis.
Há, por ora, sete templos, mas não desespero de os aumentar brevemente. Tanto mais que não consegui até agora fazer a minha escolha. Vou amiúde, quando me encontro aqui, à Avenida dos Deuses: assisto, no mesmo dia, a uma e outra cerimónia e mantenho dois dedos de conversa, já com o monge budista, que sabe inglês, já com o francês sacerdote de Júpiter Máximo, ou com o imame muçulmano. Nenhuma destas religiões oferece aspectos que me atraiam, e descubro preceitos e dogmas que pouco se me adequam.
Um teósofo aconselhou-me que reúna todas as imagens dos deuses, mesmo daqueles que já não são adorados, num grande templo único, e que chame um ministro da Igreja Unitária - ou melhor, da Teosófica - para o cerimonial do culto colectivo. A proposta não me desagrada - também porque representaria uma importante redução nos gastos - mas, por ora, prefiro ter as várias religiões separadas.
Tentei há dois meses, uma empresa, bem mais atrevida: reunir em torno de mim um pequeno concílio de deuses de carne e osso. Soube que vivem, espalhados pelo Mundo, alguns homens que são venerados como verdadeiras e legítimas encarnações divinas e encarreguei um amigo teósofo de convidar alguns. O Dalai Lama de Lhassa - que é o mais célebre desses deuses vivos - nem sequer quis receber o meu emissário e comunicou a sua desdenhosa negativa por meio de um simples lama vermelho. E pensar que eu lhe oferecia, para permanecer aqui uma semana, uma compensação enorme? O Buda vivo de Urga, na Mongólia, deixou-se trazer até aqui, junto com o célebre Krishnamurti - incarnação divina que vive habitualmente em Adyar - mas só dois não me bastavam. O meu encarregado conseguiu descobrir, num subúrbio de Paris, o sucessor daquele Guilherme Monod, morto em 1896, que se proclamou encarnação do Espírito Santo, em fins de 1836. Também esse miudinho francês, que se faz chamar Guilherme III, pretende ser um deus verdadeiro. A estes três, juntei um russo de Saratov, membro da seita Bojki (pequenos deuses) que afirma resolutamente ser uma encarnação de Deus Padre, e um pequeno siciliano, surdo, que é considerado pelos seus discípulos como manifestação definitiva do Espírito Santo. Mas a conversa destes cinco deuses não me foi do menor proveito. O Buda vivo é um velho alcoólico que só sabe repetir, entre duas bebedeiras, a célebre fórmula tibetana: Om mani padme, hum! Krishnamurti contentou-se com expor, em tom hierático e em mau inglês, algumas teorias confusas que já se encontram nos livros de Madame Blavatsky; o mujique nega-se a falar enquanto não chegar não sei que pomba divina; o siciliano limita-se a recitar algumas das suas extravagantes poesias; e, quanto ao francês, nada mais faz do que enunciar os lugares-comuns das seitas protestantes que esperam a vinda do Paracleto. Depois de perder tempo e de me aborrecer uma semana, decidi reexpedir os cinco deuses vivos para os seus países.
E deste modo, embora não tenha poupado os dólares nem a paciência, não tenho ainda uma religião a meu modo e até hoje não me atrevo a dizer qual seja a divindade que mais me convém. E se eu tornasse, um dia ou outro, à religião de minha mãe, à maori? Não pode suceder que Atua e Tangaroa sejam, no fim de contas, os verdadeiros deuses que procuro?
Giovanni Papini, in “Gog”, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, páginas 175 a 178.
Pode negar-se a existência dos deuses, mas não pode negar-se a existência das religiões. Se são tantas e conseguiram sobreviver durante tantos séculos, quer dizer que correspondem a uma necessidade profunda da alma humana. Mesmo nos países mais inteligentes e civilizados, a maior parte da população pertence a uma igreja: é mister, pois, que eu também escolha uma.
Mas a eleição é terrivelmente difícil. Vivo, por via da regra, em países cristãos e a minha religião deveria ser o Cristianismo. Mas confesso que o Cristianismo, pelo pouco que dele conheço, me assusta. Estou disposto a reconhecer que é a mais perfeita e a mais sublime das religiões, mas, não obstante, contradiz e condena todos os meus mais profundos instintos. Detesto os homens e o Cristianismo impõe-me que os ame; a muito custo suporto os amigos, e o Cristianismo obriga-me a abraçar os inimigos; sou um dos homens mais ricos da terra, e o Cristianismo ensina-me o desprezo e a renúncia às riquezas; sinto a inclinação de gozar a crueldade, e o Cristianismo impõe-me a doçura e convida-me a prantear o martírio de um Justiçado.
Devo, pois, com grande sentimento, renunciar a fazer-me cristão. Do contrário, seria um cristão rebelde e hipócrita. O Cristianismo é muito elevado para um ser da minha espécie.
Felizmente, não faltam religiões que concordem melhor com a minha natureza. Mas não é fácil escolher uma, antes de a conhecer praticamente. Por isso decidi, há tempos, recorrer ao método experimental. Numa clareira do meu imenso parque, criei, para meu uso pessoal, uma Avenida dos Deuses, isto é, duas filas de templos das maiores religiões do mundo, servidos por sacerdotes autênticos trazidos do país de origem.
Há, em primeiro lugar, um templo hindu, dividido em três partes - átrio, santuário e cela - de acordo com as melhores regras. As divindades eleitas por mim - a deusa Kail e Siva, o destruidor - são servidas por um brâmane verdadeiro, assistido por um purôhita ou capelão e por um grupo de bailarinas sagradas (bayadeiras). Ali se celebram os cinco sacrifícios diários (sandhva) e, de vez em quando, as festas da deusa Kali, em honra de quem uma cabra é degolada.
A poucos passos, eleva-se o templo budista, disposto segundo o rito chinês. É um grande edifício guardado por monstros, à entrada. Ao fundo há uma estátua de Maitreya, futura encarnação do Buda, e, ao centro, a de Sakyamuni, isto é, do Buda histórico, entre os seus discípulos predilectos: Ananda e Kasyapa. Dois monges que vieram do Che Kiang, atendem o culto que, de resto, é muito simples.
Defronte, está o templo de Zeus, de mármore, estilo dórico. De facto, a religião pagã está morta, mas tive a fortuna de encontrar, no Sul de França, um discípulo retardatário daquele Gabriel Auclerc, que, com o nome de Quintus Nantius, quis ressuscitar o paganismo no tempo da Revolução Francesa. É um velho de florida barba, muito estudioso e admirador de Juliano o Apóstata, e reconstruiu como pôde a tradição dos sacerdotes flamínios. De quando em quando, pede-lhe que lhe conceda uma vaca ou um toiro para os sacrifícios e contenta-se, à falta de um genuíno vitimário, com um dos meus cow-boys.
Ao lado, encontra-se o templo sintoista (miya), quadrado, de acordo com a tradição japonesa, e construído com madeiras sagradas. No interior há apenas o espelho de prata, símbolo do Sol, e o famoso shintai, pedra redonda na qual deve transferir-se o mitama, isto é, a alma de Deus. Dois Kannuski estão ao serviço do templo, mas quase nunca podem realizar as procissões do Shintai, por falta de fiéis.
Quis também que não faltasse um templo zaratustriano. É o mais simples de todos: um recinto de pedra, onde o sacerdote parsi - que procurei em Bombaim - mantém sempre o fogo sagrado, atirando-lhe, cinco vezes por dia, madeira de sândalo. Depois das preces, o parsi toma um pouco daquela cinza e leva-a à fronte, e nada mais.
Do outro lado, há uma minúscula mesquita muçulmana, do mais puro estilo árabe do século X, com o mihrad de frente para Meca. Um imame e um muezim, procedentes de Marrocos, repetem todos os dias as orações obrigatórias.
E, finalmente, há uma minúscula sinagoga, imitação, em pequemo, da de Amesterdão, onde um Rabino romeno, mas da tribo de Levy, procede, em companhia de um bazzan de origem ucraniana, às cerimónias indispensáveis.
Há, por ora, sete templos, mas não desespero de os aumentar brevemente. Tanto mais que não consegui até agora fazer a minha escolha. Vou amiúde, quando me encontro aqui, à Avenida dos Deuses: assisto, no mesmo dia, a uma e outra cerimónia e mantenho dois dedos de conversa, já com o monge budista, que sabe inglês, já com o francês sacerdote de Júpiter Máximo, ou com o imame muçulmano. Nenhuma destas religiões oferece aspectos que me atraiam, e descubro preceitos e dogmas que pouco se me adequam.
Um teósofo aconselhou-me que reúna todas as imagens dos deuses, mesmo daqueles que já não são adorados, num grande templo único, e que chame um ministro da Igreja Unitária - ou melhor, da Teosófica - para o cerimonial do culto colectivo. A proposta não me desagrada - também porque representaria uma importante redução nos gastos - mas, por ora, prefiro ter as várias religiões separadas.
Tentei há dois meses, uma empresa, bem mais atrevida: reunir em torno de mim um pequeno concílio de deuses de carne e osso. Soube que vivem, espalhados pelo Mundo, alguns homens que são venerados como verdadeiras e legítimas encarnações divinas e encarreguei um amigo teósofo de convidar alguns. O Dalai Lama de Lhassa - que é o mais célebre desses deuses vivos - nem sequer quis receber o meu emissário e comunicou a sua desdenhosa negativa por meio de um simples lama vermelho. E pensar que eu lhe oferecia, para permanecer aqui uma semana, uma compensação enorme? O Buda vivo de Urga, na Mongólia, deixou-se trazer até aqui, junto com o célebre Krishnamurti - incarnação divina que vive habitualmente em Adyar - mas só dois não me bastavam. O meu encarregado conseguiu descobrir, num subúrbio de Paris, o sucessor daquele Guilherme Monod, morto em 1896, que se proclamou encarnação do Espírito Santo, em fins de 1836. Também esse miudinho francês, que se faz chamar Guilherme III, pretende ser um deus verdadeiro. A estes três, juntei um russo de Saratov, membro da seita Bojki (pequenos deuses) que afirma resolutamente ser uma encarnação de Deus Padre, e um pequeno siciliano, surdo, que é considerado pelos seus discípulos como manifestação definitiva do Espírito Santo. Mas a conversa destes cinco deuses não me foi do menor proveito. O Buda vivo é um velho alcoólico que só sabe repetir, entre duas bebedeiras, a célebre fórmula tibetana: Om mani padme, hum! Krishnamurti contentou-se com expor, em tom hierático e em mau inglês, algumas teorias confusas que já se encontram nos livros de Madame Blavatsky; o mujique nega-se a falar enquanto não chegar não sei que pomba divina; o siciliano limita-se a recitar algumas das suas extravagantes poesias; e, quanto ao francês, nada mais faz do que enunciar os lugares-comuns das seitas protestantes que esperam a vinda do Paracleto. Depois de perder tempo e de me aborrecer uma semana, decidi reexpedir os cinco deuses vivos para os seus países.
E deste modo, embora não tenha poupado os dólares nem a paciência, não tenho ainda uma religião a meu modo e até hoje não me atrevo a dizer qual seja a divindade que mais me convém. E se eu tornasse, um dia ou outro, à religião de minha mãe, à maori? Não pode suceder que Atua e Tangaroa sejam, no fim de contas, os verdadeiros deuses que procuro?
Giovanni Papini, in “Gog”, Lisboa, Livros do Brasil, s/d, páginas 175 a 178.
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