sábado, abril 23, 2011

Páscoa com Vieira - II


Suposto pois, cristãos, que este é o tempo, e suposto que os dias são tão precisos que não temos outros para que apelar, o que resta é recuperar o perdido, e que nos aproveitemos deles com tais actos de verdadeira contrição e devoção, que esta Semana Santa, como o é em si, seja em nós também santa. Os ramos que cortaram das árvores os que hoje saíram a receber a Cristo: Caedebant ramos de arboribus, posto que São Mateus não declare quais fossem, São João diz que eram de palma, e São Lucas de oliveira. E com os dois afectos que estes ramos significavam, devemos nós seguir e acompanhar o Senhor em todos seus passos, oferecendo estes humildes obséquios a seus sacratíssimos pés, que isto quer dizer: Et sternebant in via. A palma é símbolo da paciência, como a oliveira da misericórdia e compaixão; e tais eram os dois mistérios que encerrava o aparato e diferença daqueles ramos: padecer e compadecer. Desta maneira receberemos e acompanharemos a nosso bom Rei e Redentor muito melhor que a ingrata e inconstante Jerusalém, se não só hoje, mas todos estes dias, padecermos alguma coisa com ele, e nos compadecermos dele. Tudo resumiu São Paulo a uma só palavra, quando disse: Si tamen compatimur. Uma coisa é compadecer, e outra padecer com: compadecer, é compadecer dele; padecer com, é padecer com ele; e tanto nos merecem a paciência as suas penas, como a compaixão o seu amor. Toda a sua sagrada humanidade do corpo e alma de Cristo nos mereceu sempre muito, mas nunca tanto como nestes dias: padecendo na imitação de seus tormentos, acompanharemos seu santíssimo corpo, e compadecendo-nos na meditação de suas dores, acompanharemos sua santíssima alma.

Digo pois, quanto ao corpo, que havemos nesta semana de procurar padecer alguma coisa em todos os cinco sentidos, assim como Cristo padeceu em todos. Adão e Eva, em um só pecado, pecaram com todos os cinco sentidos. Pecaram com o ouvir, ouvindo a serpente; pecaram com o ver, olhando para a fruta; pecaram com o palpar, tirando-a; pecaram com o cheirar, cheirando-a; pecaram com o gostar, comendo-a. Com todos os cinco sentidos pecaram nossos primeiros pais, e nós, tão herdeiros de suas misérias como de suas culpas, em todos pecamos infinitas vezes. E como Cristo vinha pagar pelo pecado de Adão e pelos nossos, quis padecer também em todos os cinco sentidos.

Padeceu no sentido de ver, vendo fugir a todos seus discípulos: vendo que um o entregou tão aleivosamente; vendo que outro o negou três vezes; vendo-se atar e levar preso, e a tantos tribunais; vendo-se tapar os olhos; vendo-se despir no Pretório, e estar despido no Calvário tantas horas à vista de todo o mundo, e no meio de dois ladrões; sobretudo, vendo a desconsolada Mãe ao pé da cruz, em cujo coração e em cujos olhos estava outras três vezes crucificado. Finalmente, vendo os meus pecados e os vossos, com que tão ingratos havíamos de ser a tanto amor, que todos naquela hora lhe eram presentes.

Padeceu no sentido do ouvir, ouvindo o Deus te salve aleivoso da boca de Judas; ouvindo os crimes e testemunhos falsos com que foi acusado; ouvindo as vozes e brados com que os mesmos que hoje o aclamaram rei lhe pediam a morte; ouvindo a sentença com que o iníquo juiz o entregou à vontade de seus inimigos; ouvindo o pregão de malfeitor e alvorotador do povo; ouvindo as injúrias e blasfémias dos príncipes dos sacerdotes na cruz, e as dos mesmos ladrões que com ele estavam crucificados, e não ouvindo em todo este tempo uma só palavra de consolação aquele mesmo Senhor que com palavras e obras tinha consolado a tantos.

Padeceu no sentido do olfacto, ou de cheirar, porque morreu entre os ascos e horrores do Monte Calvário, chamado assim das caveiras e ossos dos malfeitores que ali se justiçavam, os quais, ou porque os enterravam mal os algozes, ou porque depois os desenterravam os cães, estavam espalhados por todo o monte, e de mistura com a corrupção do sangue faziam aquele infame lugar horrendo, hediondo, asqueroso e insuportável ao cheiro. E como divino pagador de nossos pecados, não só escolheu o género da morte, senão também a circunstância do lugar; para satisfazer nele pelos excessos do olfacto, quis que fosse tão infeccionado e malcheiroso.

Padeceu no sentido do gosto, não só pelo fel e vinagre que lhe deram a beber, senão muito mais por aquela ardentíssima sede, maior incomparavelmente que todos os outros tormentos, porque só ela obrigou ao pacientíssimo Redentor a pedir alívio. Mas podendo mais o desejo de padecer por nós, que a força da natureza na humanidade enfraquecida e exausta, provou o azedo do vinagre e o amargoso do fel, para mortificar o gosto, e não quis levar para baixo o húmido, para não moderar o ardor, nem aliviar a sede.

Padeceu, finalmente, no sentido do tacto, não ficando em todo o sagrado corpo parte alguma que não fosse martirizada com particular tormento. Padeceu nos braços as cordas e cadeias, no rosto as bofetadas, na cabeça a coroa de espinhos, nos ombros o peso da cruz, nas costas os milhares de açoites, nas mãos e nos pés os cravos, e em todos os ossos, em todos os nervos, em todas as veias, em todas as artérias a suspensão, a aflição, a violência mais que mortal de estar três horas no ar pendente de um madeiro até expirar nele.

Pois, se estes são os dias em que o meu Deus padeceu tão cruelmente em todos os cinco sentidos, e tão amorosamente por mim, não será justo que eu também em todos os sentidos padeça alguma coisa por ele? Nenhum coração me parece que haverá tão ingrato e tão insensível, que se não deixe mover desta razão: Hoc enim sentite in vobis, quod et in Christo Jesu (Flp. 2,5), diz São Paulo: O que Cristo Jesus sentiu em si, devemos nós sentir em nós - ele por amor de nós, e nós por amor dele. E se a vossa devoção deseja saber e me pergunta de que modo poremos em prática este recíproco sentimento, mortificando-nos também em todos os nossos sentidos, digo primeiramente que mortifiquemos o ver, andando nestes dias com grande modéstia e recato, e negando aos olhos as vistas de todas as criaturas, e apartando-os principalmente daquelas que mais nos agradam e mais nos apartam de Deus. Os olhos têm dois ofícios: ver e chorar; e mais parece que os criou Deus para chorar que para ver, pois os cegos não vêem e choram. Já que tantos dias damos aos olhos para ver, já que tão cansados andam os nossos olhos de ver, não lhes daremos alguns dias de férias, para que descansem em chorar? Chorem os nossos olhos os nossos pecados nestes dias, e chorem muito em particular o não haverem antes cegado que ofendido a Deus. Ah! Senhor, quanto melhor fora não ter olhos, que ter-vos ofendido com eles!

O sentido de ouvir mortificá-lo-emos, retirando-nos esta semana de todas as práticas e conversações, não só ilícitas e ociosas, mas ainda das lícitas. Troquemos o ouvir pelo ler, lendo todos estes dias algum livro espiritual em que Deus nos fale e nós o ouçamos. A quem não está muito exercitado no orar, é mais fácil o ler, e muitas vezes mais proveitoso. Na oração falamos nós com Deus; na lição fala Deus connosco. E de quantas coisas - que fora melhor não ouvir - ouvimos todo o ano aos homens; estes dias ao menos, bem é que ouçamos a Deus.

No sentido do olfacto pouco têm que mortificar os homens nesta terra, porque não vejo nela este vício. Nas mulheres, se nelas há alguma demasia, lembrem-se de que nesta semana derramou a Madalena os seus cheiros e os seus unguentos aos pés de Cristo. E para os aborrecerem e detestarem para sempre, saibam que a última disposição da morte do mesmo Senhor foram estes cheiros. Porque a Madalena derramou os unguentos, se excitou a cobiça de Judas; porque em Judas se excitou a cobiça, tratou da venda; porque vendeu a seu Mestre, o prenderam e o mataram. Por isso o Senhor disse - e este é o sentido literal: Mittens haec unguentum hoc in corpus meum, ad sepeliendum me fecit, como se dissera: Estes unguentos são para a minha sepultura, porque destes unguentos se me há-de ocasionar a morte.

O sentido do gosto, ainda que se tenha mortificado por toda a Quaresma com o jejum ordinário, nestes dias é bem que haja para ele alguma particular mortificação. Muitos santos do ermo passavam esta semana inteira sem comer, e pessoas de mui diferente estado, não no ermo, senão nas cortes, passam em jejum de quinta-feira até sábado. Nos maiores dias desta semana é estilo das mesas dos grandes príncipes não se porem nelas mais que ervas; para estes dias se fizeram propriamente os jejuns de pão e água: ao menos estes dias não são para regalo. O cordeiro mandava Deus que se comesse com alfaces agrestes, porque o agreste e desabrido no comer destes dias é a melhor disposição para comer quinta-feira o Divino Cordeiro sacramentado.

O sentido do tacto, como o mais vil e mais delinquente que todos, é razão que seja nestes dias mais mortificado. Quando Urias veio do exército com aviso a el-rei David, disse-lhe o rei que fosse descansar à sua casa. E ele, que respondeu? E bem, Senhor: está o meu general dormindo sobre a terra na campanha, e eu que me haja de deitar em cama? Não farei tal desprimor. E foi-se deitar em uma tábua no corpo da guarda. A cama em que dormiu o último sono da morte o nosso Jesus, bem sabeis qual foi. Pois, será justo que quando ele tem por cama o duro madeiro da cruz, descanse o nosso corpo tão regaladamente como nos outros dias? Alguma diferença é bem que haja nestes. Ao menos o nosso rei e seus filhos, de quinta-feira até domingo não se deitam em cama, nem se assentam, senão no chão, assistindo sempre ao Senhor, sem sair nunca da Capela Real, nem de dia, nem de noite. Estas são as noites e os dias para que se fizeram as penitências: para estas noites se fizeram os pés descalços, para estas noites as disciplinas, e para estes dias e para estas noites os cilícios.

Padre António Vieira, no “Sermão de Dia de Ramos”, pregado na Matriz do Maranhão, no ano de 1656.

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