sexta-feira, agosto 03, 2007

O Mundo passa

Original.

“Quanta verdade é que a figura deste mundo sempre está passando, e nós com ela!
Dos sábios e justos diz Isaías que vêem a terra de longe. Ora vem cá, alma minha, faze por ser sábia, toma as asas da contemplação, e suspende-se nelas, e olha de longe para esta bola da terra, e verás como a sua figura sempre está passando.
Que é o que vês? Mares, rios, árvores, montes, vales, campinas, desertos, povoados... e tudo passando.
Os mares em contínuas crescentes e minguantes; os rios sempre correndo; as árvores sempre remudando-se, ora secas, ora floridas, ora murchas; os montes já foram vales, e os vales já foram montes, ou campinas; os desertos já foram povoados, e os povoados de agora, já foram desertos.
Mas olha em especial para os povoado, porque o mundo são os homens:
Tudo está fervendo em movimentos que acabam e começam: uns a sair dos seios das mães, outros a entrar nos ventres das sepulturas; aqueles cantam, dali a pouco choram; estes outros choram, dali a pouco cantam; aqui se está enfeitando um vivo, parede e meia estão amortalhando um defunto; aqui contratam, acolá distratam; aqui conversam, acolá brigam; aqui estão à mesa rindo e fartando-se, acolá estão no leito, gemendo o que riram, e sangrando-se do que comeram ...
Lá vai um no seu coche com os pés sobre tela e veludo; atrás das rodas vai um pobre nu e descalço. E que turba-multa é aquela que vai cobrindo os campos de armas e carruagens? É um exército, que vai a uma de duas coisas: ou a morrer, ou a matar. E sobre quê? Sobre que dois palmos de terra são de cá, e não são de lá ...
E que árvores são aquelas que vão voando pelas ondas com asas de pano? São navios, que vão buscar muito longe coisas que piquem a língua para comer mais, coisas que afaguem a pele, coisas que alegrem os olhos; isto é: espécies, sedas, ouro.
Olhai o tráfego! Tudo ferve, tudo se muda por instantes. Se divertirdes os olhos, dali a nada tudo achareis virado. O rico já é pobre, o mecânico já é fidalgo, o moço já é velho, o são já é enfermo, e o homem já é cinzas. Já são outras cidades, outras ruas, outra linguagem, outros trajos, outras leis, outros homens.
... Tudo passa!”

Pde. Manuel Bernardes (Sermões, I, 202)

(RCS)

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