quinta-feira, setembro 18, 2008

Modernismo: Tentativas pré-conciliares

Original aqui.

«Havia muito tempo, os neo-modernistas tratavam de se desfazer da Comissão Bíblica Pontifícia, i. é, do Magistério da Igreja, tal qual Lutero, contudo com mais perfídia. Almejavam o mesmo resultado, mas por meio do próprio Magistério Eclesiástico. Isso está documentado em Leão XIII e os estudiosos da Bíblia (Rovigo, 1976, 276 p.), na introdução do estudo sobre A Ressurreição de Jesus (idem, 1978, 246 p.) contra o jesuíta Xavier-León Dufour (que imita Will Marven, fundador da Redaktiongeschichte, que nega a Ressurreição) e, por último, em A Tradição contra o Concílio (Roma, 1989, 284 p.).
Primeira tentativa – Aludamos aqui brevemente à primeira tentativa, feita em 1948 pelo card. Suhard, arcebispo de Paris, que pede ao card. Tisserant (presidente vitalício da Comissão Bíblica Pontifícia) a abolição dos dois decretos dessa comissão, que defendem a autenticidade mosaica do Pentateuco (1906) e a historicidade dos três primeiros capítulos do Gênese (1909). A resposta, em francês, carece de transparência, é longuíssima e possui algumas frases anfibológicas. Os progressistas exultam e começam a falar em “mitos” do Gênese. Pio XII claramente deplora, no Humani Generis, a interpretação fantasiosa dos que abusam, de forma suspeita, da carta enviada pelo card. Tisserant ao cardeal Suhard. O card. Bea, no seu comentário à encíclica, publicado em La Civiltà Cattolica (n. 101, 1950-IV, p. 417-430), é claríssimo sobre esse ponto.
Segunda tentativa – Em 1954, um texto é apresentado aos membros da Comissão Bíblica Pontifícia – quais sejam, os cardeais Ruffini, Mercati, Pizzardo e Tisserant (presidente vitalício, de 1937 até sua morte) - em que se solicita que sejam declarados superados os decretos emitidos pela própria Comissão Bíblica Pontifícia: era a ordem do dia da reunião! É nesse ensejo que, em 1955, o pe. A. Millier (secretário da Comissão Bíblica Pontifícia) e o pe. A. Kleinhans (subsecretário) publicam separadamente dois artigos em substância idênticos: “na medida em que se sustentem nos ditos decretos opiniões que não se refiram, nem direta nem indiretamente, às verdades relativas à fé e aos costumes, entende-se que o investigador pode prosseguir seus estudos com absoluta liberdade”. Os partidários da liberdade, com E. Vogt à frente (Bíblica, 1955, p. 564 e ss.), apreciam deveras ambos os artigos: constituem a tácita condenação à morte dos decretos da Comissão Bíblica Pontifícia.
Terceira tentativa – Esta vinculada diretamente com a precedente. Em 1957, aparece a Introdução à Bíblia, t. I, sob a direção de A. Robert e A. Feuillet (Desclée, Tournai, 880 p.). O grosso volume sai da forja dos modernistas franceses: o Instituto Católico de Paris – que no passado já contava entre seus professores com Ernest Renan (racionalista) e Alfred Loisy (modernista) e, no momento de que falamos, com Pierre Grelot (que virá a ser membro da nova e bizarra Comissão Bíblica) – está em perfeita harmonia com o pe. Lyonnet, S.I., do Instituto Bíblico Pontifício. O livro, que milita contra a doutrina católica da inspiração individual, favorecendo a presumida inspiração coletiva e a limitação da inerrância (Henri Cazelles), beneficiou-se da campanha publicitária feita a seu favor pela Comissão Bíblica. Evita-se desta feita que o Dicastério Supremo, o Santo Ofício, intervenha e o condene: o card. Bea se oferece para revisá-lo e corrigir seus erros a fim de permitir uma nova edição. Descobrimos agora quais eram os promotores da proposição desaprovada em 1954: Paris e Roma, sempre. O pe. Lyonnet, S.I., era o deus ex machina que induzia seu protetor secreto, o card. Tisserant.
Apesar de renovarem as supracitadas tentativas, o Instituto Bíblico Pontifício já ministrava as “novidades” a seus alunos. O pe. Lyonnet em pessoa dava o mal exemplo com o artigo O pecado original e a exegese de Romanos 5, 12, publicado na revista Recherches de science religieuse, nº 55, p. 63-85 (1956), onde nega que se possa apontar o texto de São Paulo como argumento bíblico para o dogma do pecado original; não obstante, trata-se de um texto cujo sentido, como o admitem todos, foi reconhecido em dois cânones do Concílio de Trento.
O ano de 1943, em que se publica a encíclica Divino Afflante Spiritu, de Pio XII, apresentava-se como o ano da “liberação” para os exegetas católicos: já está derrubado o muro – diziam – que separava os católicos dos protestantes e racionalistas; já se abandonou toda distinção; o que vale é a investigação da Bíblia mediante uma exegese exclusivamente filológica e histórica. No ano de 1943 começava uma nova era. O card. Bea afirmava: “o ecumenismo já se esboça entre os exegetas”. Só resta um inimigo de que se deve dar cabo: o exegeta católico que, em seu trabalho, segue fiando-se na interpretação autêntica, no sentido quem tenuit ac tenet Sancta Mater Ecclesiae [que sustentou e sustenta a Santa Madre Igreja], e que segue crendo na inspiração divina (ilustrada na encíclica Providentissimus Deus), na inerrância absoluta, na historicidade dos Evangelhos etc.
Quarta tentativa – A 3 de setembro de 1960 apareceu, em La Civiltà Cattolica (p. 449-460) um artigo adrede intitulado Para onde vai a exegese católica? A resposta saltava aos olhos ao se ler o artigo: a exegese católica muda de roupagem, se camufla, abandona todo princípio dogmático. O autor, o pe. Alonso Schökel, S.I., atribuía essa capacidade de subversão à encíclica Divino Afflante Spiritu de Pio XII. O Instituto Bíblico Pontifício enviou um trecho do artigo a todos os bispos italianos; era um manifesto propagandístico em vista do iminente concílio anunciado de súbito pelo papa Roncalli, o ingênuo (verdadeiro ou fingido?) João XXIII. O Instituto Bíblico Pontifício julgava que chegara o momento de sair das sombras. Já havia mais de dez anos (com o novo reitor, o pe. E. Vogt) que os professores Lyonnet, Zerwick, Schökel e Dyson vinham incutindo na doutrinação de seus alunos – com maior ou menor prudência – sua “revolução” neo-modernista. Os mais preparados em teologia se surpreendiam e escandalizavam; os demais se deixavam fascinar pelas “novidades”. Uns e outros confiavam a terceiros, por motivos diferentes, sua perplexidade ou entusiasmo. Citarei apenas dois exemplos.
Eu ensinava em Roma desde 1950; dirigia a Rivista Biblica fundada por mim (1953-1957), quando me veio visitar um excelente religioso brasileiro, Calisto Vendrame (1951-1953), para me falar da exegese dos livros I e II de Samuel lecionada pelo pe. Dyson, S.I. O pe. Vendrame lhe perguntara: “como se pode conciliar a doutrina da inspiração com a exegese que o sr. nos propõe?”. O professor lhe respondeu: “Mas como! Você ainda segue a doutrina da inspiração divina que o pe. Bea ensina?”. O pe. Bea não era reitor desde 1949, mas continuava sendo professor. Quando lhe contei [ao pe. Bea] o episódio, ele me disse, visivelmente contristado: “O pe. Dyson não se dá conta do grave dano que está causando a seus alunos”.
Ao contrário, Luigi Morali e Leone Algisi de Bergame (1948-1950) estavam entre os mais entusiasmados: “Está disponível aos alunos uma nova teoria sobre a inspiração; contudo, não convém fazê-la pública”. Tal como o pe. Dyson, eles caçoavam do pe. Bea. Era uma espécie de maçonaria.»

Mons. Francesco Spadafora

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