
Na primeira e na segunda tentação tentou o demónio a Cristo como a Filho de Deus: na terceira como a puro homem. Por isso na terceira não disse: Se Filius Dei es: como tinha dito na primeira e na segunda. Tentou a Cristo, como se tentara a qualquer homem: esta é a razão e a diferença, porque só esta última tentação nos pertence propriamente a nós. Mas como poderá um homem, como poderá um filho de Adão resistir a uma tentação tão poderosa e tão imensa como esta que o demónio fez a Cristo? A Adão fez-lhe tiro o demónio com uma maçã, derribou-o: a Cristo fez-lhe tiro com o mundo todo. Ostendit ei omnia regna mundi. Mas sendo esta bala atirada a Cristo como a homem, e dando em um peito de carne, foi tão fortemente rebatida, que voltou com maior força contra o mesmo tentador: Vade retro. Um dos casos mais notáveis que sucederam em nossos dias, no famoso cerco de Ostende, foi este: Estava carregada uma peça no exército católico: entra pela boca da mesma peça uma bala do inimigo, concebe fogo a pólvora, sai outra vez a bala com dobrada fúria; e como veio e voltou pelos mesmos pontos, foi-se empregar no mesmo que a tinha atirado. Ó que bizarro e venturoso sucesso! Vade retro! Assim havemos de fazer aos tiros do demónio. Volte outra vez a bala contra o inimigo e vençamos ao tentador com a sua própria tentação. Não cortou David a cabeça ao gigante com a sua própria espada? Judite, sendo mulher não degolou a Holofernes com a sua? Pois assim o havemos nós de fazer; nem necessitamos de outras armas mais, que as mesmas com que o demónio nos tenta.
Mostrou o demónio a Cristo todos os reinos do mundo e suas glórias: disse-lhe que tudo aquilo lhe daria de uma vez, se lhe dobrasse o joelho. Parece que faz estremecer a grandeza desta tentação! Mas o demónio é que havia de tremer dela. Desarmou-se a si, e armou-nos a nós. Tu, demónio, ofereces-me de um lanço todo o mundo, para que caia, para que peque, para que te dê a minha alma, logo a minha alma, por confissão tua, vale mais que todo o mundo. A minha alma vale mais que todo o mundo? Pois não te quero dar o que vale mais pelo que vale menos: Vade retro. Pode-nos o demónio dar ou prometer alguma coisa que não seja menos que o mundo? Claro está que não. Pois aqui se desarmou para sempre: nesta tentação perdeu todas, se nós não temos perdido o juízo. Ouvi a Salviano: Quis ergo furor est viles a nobis animas nostras haberi, quas etiam diabolus putat esse pretiosas. Homens loucos, homens furiosos, homens sem entendimento, nem juízo; é possível que sendo as nossas almas na estimação do mesmo demónio tão preciosas, no vosso conceito e no vosso desprezo hão-de ser tão vis?! O demónio quando me quer roubar, quando me quer perder, quando me quer enganar, não pode deixar de confessar que a minha alma vale mais do que todo o mundo; e eu, sendo essa alma minha, não há-de haver no mundo coisa tão baixa, tão vã e tão vil , pela qual a não dê sem nenhum reparo? Quis furor est? Que loucura, que demência, que furor é este nosso? Muito mais obrigada está a nossa alma ao demónio, muito mais lhe deve que a nós. Ele a honra, nós a afrontamos. Envergonhou-se o demónio no primeiro lanço de oferecer menos por uma alma do que o mundo todo.
Caio César, como refere Séneca, mandou de presente a Demétrio duzentos talentos de prata, que fazem hoje da nossa moeda mais de duzentos mil cruzados. Não creio que haveria na nossa Corte quem não beijasse a mão real e aceitasse com ambas as mãos a mercê. Era porém Demétrio filósofo estóico, como se disséssemos, cristão de aquele tempo: e que respondeu? Si tentare me constituerat, toto illi fui experiundus imperio: Andai, levai os seus talentos ao imperador, e dizei-lhe que se me queria tentar, que havia de ser com todo o seu império: é, e chama-se senhor de todo o mundo? Com todo o mundo me havia de tentar. Não no fez assim o César, porque não conhecia a Demétrio, mas fê-lo assim o demónio, princeps hujus mundi, porque sabe o que vale uma alma. Se vos tentar o demónio com menos que todo o mundo, dai-vos por afrontado; e se vos tentar com todo o mundo, fique vencido. Quid prodest homini, si universum mundum lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur? Que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, adquirir todo o mundo, senhorear e dominar todo o mundo, se há-de perder a sua alma? Aut quam dabit homo commutationem pro anima sua? Ou que coisa pode haver de tanto peso e de tanto preço, pelo qual se haja de vender a alma, ou se haja de trocar? Este é o caso e a suposição em que estamos, nem mais nem menos. Oferece-nos o demónio o mundo, e pede-nos a alma. Considere e pese bem cada um se lhe está bem este contrato, se lhe está bem esta venda, se lhe está bem esta troca. Mas nós trocamos e vendemos, porque não pesamos.
Padre António Vieira, in “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1655.
Mostrou o demónio a Cristo todos os reinos do mundo e suas glórias: disse-lhe que tudo aquilo lhe daria de uma vez, se lhe dobrasse o joelho. Parece que faz estremecer a grandeza desta tentação! Mas o demónio é que havia de tremer dela. Desarmou-se a si, e armou-nos a nós. Tu, demónio, ofereces-me de um lanço todo o mundo, para que caia, para que peque, para que te dê a minha alma, logo a minha alma, por confissão tua, vale mais que todo o mundo. A minha alma vale mais que todo o mundo? Pois não te quero dar o que vale mais pelo que vale menos: Vade retro. Pode-nos o demónio dar ou prometer alguma coisa que não seja menos que o mundo? Claro está que não. Pois aqui se desarmou para sempre: nesta tentação perdeu todas, se nós não temos perdido o juízo. Ouvi a Salviano: Quis ergo furor est viles a nobis animas nostras haberi, quas etiam diabolus putat esse pretiosas. Homens loucos, homens furiosos, homens sem entendimento, nem juízo; é possível que sendo as nossas almas na estimação do mesmo demónio tão preciosas, no vosso conceito e no vosso desprezo hão-de ser tão vis?! O demónio quando me quer roubar, quando me quer perder, quando me quer enganar, não pode deixar de confessar que a minha alma vale mais do que todo o mundo; e eu, sendo essa alma minha, não há-de haver no mundo coisa tão baixa, tão vã e tão vil , pela qual a não dê sem nenhum reparo? Quis furor est? Que loucura, que demência, que furor é este nosso? Muito mais obrigada está a nossa alma ao demónio, muito mais lhe deve que a nós. Ele a honra, nós a afrontamos. Envergonhou-se o demónio no primeiro lanço de oferecer menos por uma alma do que o mundo todo.
Caio César, como refere Séneca, mandou de presente a Demétrio duzentos talentos de prata, que fazem hoje da nossa moeda mais de duzentos mil cruzados. Não creio que haveria na nossa Corte quem não beijasse a mão real e aceitasse com ambas as mãos a mercê. Era porém Demétrio filósofo estóico, como se disséssemos, cristão de aquele tempo: e que respondeu? Si tentare me constituerat, toto illi fui experiundus imperio: Andai, levai os seus talentos ao imperador, e dizei-lhe que se me queria tentar, que havia de ser com todo o seu império: é, e chama-se senhor de todo o mundo? Com todo o mundo me havia de tentar. Não no fez assim o César, porque não conhecia a Demétrio, mas fê-lo assim o demónio, princeps hujus mundi, porque sabe o que vale uma alma. Se vos tentar o demónio com menos que todo o mundo, dai-vos por afrontado; e se vos tentar com todo o mundo, fique vencido. Quid prodest homini, si universum mundum lucretur, animae vero suae detrimentum patiatur? Que aproveita ao homem ganhar todo o mundo, adquirir todo o mundo, senhorear e dominar todo o mundo, se há-de perder a sua alma? Aut quam dabit homo commutationem pro anima sua? Ou que coisa pode haver de tanto peso e de tanto preço, pelo qual se haja de vender a alma, ou se haja de trocar? Este é o caso e a suposição em que estamos, nem mais nem menos. Oferece-nos o demónio o mundo, e pede-nos a alma. Considere e pese bem cada um se lhe está bem este contrato, se lhe está bem esta venda, se lhe está bem esta troca. Mas nós trocamos e vendemos, porque não pesamos.
Padre António Vieira, in “Sermão da Primeira Dominga da Quaresma”, pregado na Capela Real, em Lisboa, no ano de 1655.
Texto com uma abordagem das tentações muito interessante. Ainda não tinha pensado neste aspecto...
ResponderEliminarParabéns pelo blog!
ResponderEliminarEste é o endereço do meu humilde blog:http://rainhaddosmartires.blogspot.com.br/